<$BlogRSDUrl$>

segunda-feira, janeiro 19, 2004

O código do assento 

A complexa hierarquia de poderes nas empresas francesas é subtilmente definida por códigos tácitos. Como tudo em França, um sistema que passa no papel como simples, sólido, justo — fundado em dois séculos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade — é assim discretamente contornado para dar espaço a uma teia de discriminação, corrupção e privilégios tão suja como a de qualquer velho país europeu — mas dissimulada com muito mais arte. Consiste nisso o desígnio do baguete: por mais podre que esteja o âmago, o importante é que a superfície esteja sempre imaculada, perfumada e que coma com os talheres certos.

De volta ao local de trabalho (sim, eu trabalho) após umas férias prolongadas, tive uma sensação de estranheza. Não tinha mudado de posto, o escritório parecia inalterado, até os papéis sobre a secretária estavam exactamente na posição em que os havia deixado um mês atrás, ao milímetro — o que de resto diz muito sobre a qualidade dos serviços de limpeza nesta espeluca. A fonte subliminar daquela sensação teimava em furtar-se à minha percepção consciente, mas eu não conseguia de modo nenhum alhear-me e dar seguimento à minha actividade laboral, a qual não vou aqui descrever mas que, posso assegurar, é vital para o futuro da Humanidade. Numa derradeira e desesperada tentativa, decidi analisar os padrões de manchas e rachas do tecto, à procura de evoluções recentes que pudessem ter despoletado os alarmes no meu subconsciente. Levantei os olhos, recostei-me, pousei os cotovelos nos braços da cadeira e ao fim de poucos segundos iluminou-se-me o espírito. Nas minhas regulares sessões de inspecção dos sinais de humidade no tecto do escritório, o ritual era outro: levantava os olhos, recostava-me e cruzava os braços. Debrucei-me um pouco sobre o que me poderia ter levado a adquirir esse hábito, sabendo que os braços cruzados são conotados na sociedade ocidental com apatia, resignação e ócio, qualidades geralmente repudiadas e penalizadas no ambiente empresarial, ainda que cultivadas com amor na função pública portuguesa. Era simples: cruzava os braços porque até essa altura nunca havia tido onde apoiar os cotovelos... Tinham crescido braços na minha cadeira! Já não estava numa vulgar chése francesa mas sim numa fotâlhe, se bem que não chegasse propriamente a ser uma poltrona.

Vim a saber junto de informadores locais que um dos tais códigos tácitos é o "código do assento". Desde a cadeira de pau à poltrona de couro com vibromassagem, o suporte do fofo de cada empregado classifica-se de acordo com uma miríade de graduações que estabelece as relações de respeito no escritório. Assim, trabalho mais, tenho mais responsabilidades, ganho o mesmo e até estou mais desconfortável, mas haviam de ver os olhares de ódio e inveja que me lançam cada vez que gabo junto da escumalha estagiária o sistema pneumático da minha cadeira de braços.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?