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terça-feira, março 09, 2004

A Nova Nova Atlântida 

O último livro do Paul Auster, "Oracle Night", recorre a um artifício formal que não tem nada de especialmente inovador: um escritor escreve sobre um escritor que escreve sobre um editor que lê o romance de outro escritor. O velho truque das bonecas russas. É o género de coisa que o Auster gosta e sabe fazer, "c'est son truc", como dizem os baguetes. Ainda não li o livro por isso não me vou pôr a comentá-lo (eu sei, isso não é obstáculo para os críticos, mas eles são profissionais; há técnicas que não domino, ensinadas na Escola de Críticos, para falar do que não se sabe). Só li a sinopse, que contém um pormenor delicioso.
O protagonista de primeiro grau, clássico autor desinspirado, encontra numa papelaria chinesa em Brooklin um bloco-notas de propriedades mágicas, que lhe desbloqueia a torrente de ideias e fluência verbal. Dado o carácter esotérico do caderninho, a sua origem não podia deixar de ser tanto quanto possível misteriosa. Noutros tempos o caderninho teria vindo da Atlântida, do Jardim do Éden, do Templo de Salomão, no séc. XIV italiano viria da China, no séc. XV português do Reino de Preste João, no séc. XVI espanhol do Eldorado, no séc. XIX britânico das Nascentes do Nilo. No céptico séc. XXI americano, em que toda a Terra parece explorada e a mitologia do séc. XX de uma Comunidade Galáctica e homenzinhos verdes perdeu fôlego, começa a ser difícil arranjar locais míticos com carisma suficiente para fazer sonhar.
"No pasa nada": se não há, inventa-se. O Auster teve de ir ao fundo da gaveta buscar um local com uma imagem suficientemente indistinta e evasiva no imaginário americano, que lhe proporcionasse matéria bruta para criar o seu próprio mito. Um nome que evoca paragens remotas, culturas perdidas, que soa algo familiar mas é convenientemente despegado de quaisquer referências concretas. Um nome que dificilmente pode ser encontrado nas etiquetas dos produtos, que não é mencionado na TV, nos jornais, um nome que não está manchado com a banalidade do quotidiano. O caderninho mágico de Auster vem de Portugal.

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