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quarta-feira, agosto 04, 2004

Laetitia Connection 

Quarta-feira, dia 23 de Junho, pelas oito e meia da noite, cheguei à porta de casa com uma sanduíche grecque na mão direita e uma revista, javardamente adornada de nódoas oleosas, na esquerda. Mais tarde viria a descobrir que não era só para a revista que a gordura da sanduíche grecque pingava mas também para a perna direita das calças e boa parte da camisa; no momento que descrevo, porém, gozava ainda a felicidade fátua da ignorância.
No que respeita à ofensiva origem étnica da sandocha* -- e antes que a mais esquiva suspeita ameace ensombrar o meu bom nome de patriota -- convém assinalar que nesta altura os tristes acontecimentos de 4 de julho ainda estavam longe de se prever; asseguro que a partir desse dia mantive um estrito boicote a produtos de origem ou inspiração helénica, tendo mesmo abandonado a leitura da Anábase de Xenofonte** num dos pontos mais emocionantes da récita.
Abri então a porta, não sem algumas dificuldades -- pois segurando a sandocha com uma mão e a revista com outra mão, num total de duas mãos, não sobra membro livre para manipular chave e maçaneta. Lá me arranjei, usando métodos pouco elegantes que decerto não contribuíram para o asseio da minha indumentária. Ao fim de três parágrafos e duas notas de rodapé de verborreia, entrei em casa. Esperava-me a seguinte mensagem no atendedor de chamadas:

Message du 0156891200 reçu hier à 12:31
Oui, bonjour, c'est Monique Uznatov pour William Klein à propos de Laetitia Casta. Vous pouvez me rapeller au 0156891200 ou également mon portable 0680459932. Merci, au revoir!


Como não percebo bem francês, não sei se ela queria falar com o William se com a Laetitia. Se queria falar com a Laetitia eu não a podia ajudar, já não a via desde o pequeno-almoço de domingo; do William nunca tinha ouvido falar. Posto isto, resolvi não responder.

Infelizmente, a história não ficou por aqui. Nos dias seguintes, a senhora telefonou com insistência. Em algumas dessas ocasiões, a Pátchi, que trabalha por turnos e tem direito ao seu descanso, foi repetidamente obrigada a acordar para atender o telefone. Repetidamente, explicou em bom francês que ali não morava nenhum William. Repetidamente, foi ignorada. Ficou claro que não era a agente do William que procurava a Laetitia, era a agente da Laetitia que procurava o William. Assustei-me momentaneamente, pensando que a rapariga poderia estar grávida e à procura do pai da criança, mas rapidamente me apercebi do absurdo dessa hipótese: nesse caso seria o advogado a ligar.

Decidido a resolver esta situação, fiz o que faço quando não faço ideia do que fazer: google "William Klein". O google vomitou-me no topo da lista um fotógrafo famoso. Mais que famoso: um Master of Photography. Portanto famoso, rico e prestes a esticar o pernil. Uma vez que o homem é fotógrafo e mora em Paris, faz algum sentido que se envolva em negócios com a Laetitia, o que empresta credibilidade ao enredo.

Claro que esta descoberta não resolveu em nada o meu problema; ajudou-me todavia a sentir-me parte da teia universal de ligações, objectos, coincidências, personagens, lapsos e omissões que fazem a História, coisa que nunca teria conseguido fazer recorrendo a talento próprio, criativadade ou capacidade de trabalho, qualidades de que Deus Nosso Senhor se absteve de me dotar.

Depois de algumas semanas de silêncio, que cheguei a julgar definitivo, uma nova mensagem:

Message du 0156841200 reçu jeudi 29 Juillet à 17:47
Ouiii... coucou William, c'est Monique! Euhhhh... bah écoute, j'ai reçu tous les tirages. Vraiment elle a (issue?) vraiment bien, maintenaint, vraiment. Merci pour le livre dédi...dé...dicacé, que je... voilà... ça ça m'a vraiment touché. Et puis, bon, on se reparle. Je suis au bureau, je suis à l'agence.

O fiel e persistente leitor da Baguete, aquele que sobrevive meritosamente apesar da penúria de postas, é assim recompensado com algumas pepitas de informação privilegiada e em primeira mão. Fica a saber:

  1. Que vão sair em breve fotografias novas da Laetitia pelo William, que pelos vistos estão "vraiment bien";
  2. Que os agentes de modelos gostam muito de dizer "vraiment" (ou será só a Monique?)
  3. Que ao fim de um mês a relação da Monique e o William já dá direito a "coucou", mas já sabemos que isto no meio artístico é uma salganhada;
  4. Que a Laetitia, a agente da Laetitia e o fotógrafo da Laetitia moram todos no meu bairro;
  5. O número do telefone e do telemóvel da agente da Laetitia (dai-lhe o uso que quiserdes, desde que não digam que veio daqui)

*Os leitores mais argutos terão já intuído que a expressão "sanduíche grecque", ofuscada pelo erudito termo estrangeiro grecque, designa na verdade uma vulgar sanduíche grega, gyros em Grego, le sandwich grec em Francês. Pode parecer estranho que, em Francês, "sandwich" seja uma palavra masculina, mas lembro que por cá as sanduíches recorrem primordialmente ao pão-baguete, de morfologia indisfarçavelmente viril.

**Obra que descreve a regresso atribulado dos dez mil mercenários gregos que sobreviveram à derrota de Cunaxa. Pronuncia-se cunacsa, não se prestando por isso a trocadilhos grosseiros com a pronúncia de Viseu. Xenofonte, o autor, foi um dos líderes desta expedição e refere-se a si próprio na terceira pessoa -- "Xenofonte ofereceu sacrifício a Apolo", "Xenofonte deu ordem para atacar" -- prenunciando o estilo literário de Jardel.





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