<$BlogRSDUrl$>

segunda-feira, outubro 04, 2004

Ontologia 

Num jantar infestado de espanhóis, fui confrontado com uma personagem curiosa. Tendo crescido este senhor em Tânger, no seio de uma família de origem aragonesa, e vivendo desde há pouco em Madrid, ostentava um cerradíssimo e paradoxal sotaque andaluz, que o próprio admitia mas que não sabia explicar. Metade das palavras eram calão, as outras cortava-as a meio; tinha sempre o cuidado de não pronunciar as consoantes.
Alegava estudar Ontologia.
Intrigou-me que tal disciplina pudesse ser objecto de uma licenciatura mas, no espírito aberto e tolerante que me caracteriza, concedi que se pode haver uma licenciatura em Psicopedagogia Curativa, também não será difícil arranjar maneira de esticar a Ontologia até render cinco anos de propinas. Fiquei muito contente porque podia explorar com tão douto interlocutor alguns dos problemas metafísicos que me vinham atormentando a alma e fazendo perder o sono. Para começar, achei por bem lançar a problemática da classificação da realidade em categorias estáticas e necessariamente duvidosas, evocando esta passagem de Borges:

Essas ambiguidades, redundâncias e deficiências recordam as que o doutor Franz Kuhn atribui a certa enciclopédia chinesa intitulada "Empório celestial dos conhecimentos benévolos". Nas suas remotas páginas consta que os animais se dividem em (a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães vadios, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados com um finíssino pincel de pêlo de camelo, (l) etcétera, (m) que acabam de partir a bilha, (n) que de longe parecem moscas.
J. L. Borges, "O Idioma Analítico de John Wilkins", in "Outras Inquirições", trad. Baguete

Interpelado de forma tão pertinente, o espanhol olhou-me nitidamente abalado, abriu a boca para falar, hesitou, abanou a cabeça e disse (transcrevo para castelhano corrente os bárbaros balbuciamentos andaluzes): "De que coño me estás hablando, tío? Ontología?? Estoy estudiando Odontología! Dientes, imbecil!"


This page is powered by Blogger. Isn't yours?