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sexta-feira, março 19, 2004

Y'a une fille qu'habite chez moi 

Há coisas boas em todas as culturas e até estes baguetes têm algumas, sou obrigado a reconhecer. Como sou uma alma gentil que gosta de partilhar, fica aqui a minha última descoberta, o Bénabar, a voz de uma geração: a do parisiense de trinta e poucos que anda de blazer, jeans coçados, sapatos afilados e cabelo look out-of-bed, mora num deux-pièces minúsculo mas caríssimo com vigas de madeira no centro de Paris e engata nos cafés e galerias de arte (ou seja, quase todos os meus vizinhos). Deixo a letra, façam favor de imaginar a música: melodias banais com arranjos a tresandar a Paris, fanfarra funk e acordeão musette, inspirações circenses e Tom Waits nos anos 80. Aqui está a minha versão-à-pressão:


Vários indícios despertaram a minha atenção
Abro os olhos
Vou fazer uma revista pra dar descanso à alma
Perco a calma

Há pormenores que não enganam

Os lençóis, edredons e a fronha da almofada
já não estão desirmanados
Ao lado dos meus trapos emaranhados
Há roupa dobrada e passada

Há pormenores que não enganam
Acho que está uma gaja a morar cá em casa!

Duas escovas de dentes na casa de banho
Sabonete sem sabão e secador de cabelo
(Meu não é de certeza)
Pequenas bolas bizarras
Para perfumar a banheira
é um verdadeiro pesadelo
Alguém massacrou todas as minhas amigas baratas!

Na cozinha sacos de chá
De verbena de camomila
Uma mensagem no gravador de uma mãe
Que não é a minha
A falar mal da minha família!

Há pormenores que não enganam

Alguém lavou a loiça às escondidas
Que é feito dos meus velhos hábitos, arrumar a casa de três em três meses?
Abro o frigorífico, horror, é a loucura!
Está cheio de legumes!
Até há fruta!

Há pormenores que não enganam
Acho que está uma gaja a morar cá em casa!

Onde estão os meus amigos que sornavam à frente da TV?
As caixas de pizza, os pacotes de batata frita esventrados
As beatas esmagadas nos pratos
A minha colecção de Playboys? posta de lado.


Na mesinha de cabeceira já não há camisas, só aspirina
Tenho uma gaja cá em casa
Também há velas contra o odor da nicotina
Tenho uma gaja cá em casa!

Há pormenores que não enganam

Há uma cortina a sério em vez de um lençol pregado na janela
E o qué isto meu Deus, uma planta verde!

O aspirador ainda está quente
é demais, vou apresentar queixa!
Vou levá-lo ao laboratório
Pra tirarem as impressões digitais

Dir-se-ia que já não sou solteiro
A culpada já não me escapa
Está à minha frente, a rede aperta-se
Agarrada ao telefone, sentada de pernas cruzadas
Num bonito vestido às flores
Uma menina diz-me "Deixa-te de mariquices
Pago tanto de renda como tu!"


Version originale: Tenho consciência plena que a turba ígnara que frequenta este blog mal consegue ler Português, quanto mais estrangeiro, mas na eventualidade remota de aparecer praí um iluminado, aí está a versão original, que rima e tudo.


Plusieurs indices m'ont mis la puce à l'oreille
J'ouvre l'oeil
J'vais faire une enquète pour en avoir le coeur net
Ca m'inquiète

Y'a des détails qui trompent pas

Les draps la couette et la taie d'oreiller
Sont plus dépareillés
A coté de mes fringues en boule
Y'a des vêtements pliés et repassés

Y'a des détails qui trompent pas
J'crois qu'y a une fille qu'habite chez moi!

Deux brosses à dent dans la salle de bain
Du savon sans savon et le sèche-cheveux
C'est certainement pas le mien
Des petites boules bizarres
Pour parfumer la baignoire
C'est un vrai cauchemar
Quelqu'un a massacré tous mes amis cafards!

Dans la cuisine des sachets de thé
De verveine de camomille
Un message sur le répondeur d'une mère
Qu'est pas la mienne
V'là qu'elle s'en prend à ma famille!

Y'a des détails qui trompent pas

Quelqu'un en douce a fait la vaiselle
Où sont mes habitudes mon ménage trimestriel?
J'ouvre le frigo horreur c'est d'la folie!
Y'a plein de légumes!
Y'a même des fruits!

Y'a des détails qui trompent pas
j'crois qu'ya une fille qu'habite chez moi!

Où sont mes potes qui glandaient devant la télé
Les boîtes de pizza les paquets de chips éventrés
Les mégots de cigarettes écrasés dans les assiettes
Ma collection de new look? aux oubliettes!

Sur la table de nuit y'a plus de capotes mais de l'aspirine
Y'a une fille qu'habite chez moi
Y'a aussi des bougies contre l'odeur de la nicotine
Y'a une fille qu'habite chez moi!

Y'a des détails qui trompent pas

Y'a un vrai rideau y'a plus un drap cloué sur la fenêtre!
Qu'est ce que c'est que ça mon Dieu c'est une plante verte!

L'aspirateur est encore chaud
C'est trop je porte plainte!
Je vais l'emmener au labo
Pour vérifier les empreintes

On dirait que je suis plus célibataire
La coupable je la tiens
Elle est devant l'étau se resserre
Accrochée au téléphone assise en tailleur
Dans une jolie robe à fleur
Une fille me dit "arrête ton cinéma
Et le loyer je le paye autant que toi!"


Paroles et Musique: Bénabar 2001, "Bénabar"

quinta-feira, março 18, 2004

Pastoral Taliban 

A avaliar pela javardeira que assaltou as estações de metro parisienses esta semana, o estado de alerta anti-terrorista deve ter passado a vermelho outra vez. A primeira coisa a desaparecer são os caixotes de lixo.
A Palestina não é mais que um pretexto congeminado pelos marketers aiatolas para promover o recrutamento. O verdadeiro e nobre intuito dos grupos terroristas islâmicos é minar a assepsia desumana de certas cidades europeias, trazer um pouco do calor e alegria das ruas de Rabat ou Teerão.
Eles têm um sonho, e no seu sonho vêem rebanhos de ovelhas no RER ou no tube de Londres, disseminando caroços de azeitona no seu caminho matinal para as verdejantes pastagens da periferia; cabras, crianças, galinhas, camelos, em idílica comunhão com o Homem (com a Mulher não, em casa há muita loiça para lavar e roupa para passar); oh musas, que bela imagem! o cheirinho das almôndegas de borrego a fritar; o chá de menta ou maçã em copos partilhados por milhares de pessoas sem recurso a quaisquer detergentes ou desinfectantes — perigosos inimigos do ambiente, potencialmente cancerígenos — num espírito fraterno de comunhão de almas e micróbios salivares; os vendedores de ervas mágicas e terapêuticas, libertos da opressiva legislação europeia que interdita a venda de um fármaco só porque matou meia dúzia de ratos de laboratório.

Se tudo isto não passa de um sonho longínquo, ao menos uns papelinhos no chão já se vão vendo. Pessoalmente, sinto-me muito mais em casa.


terça-feira, março 16, 2004

Nota social 

Hoje estão 19 graus em Paris! Por esta altura no ano passado, a discussão nacional era a chacina que o frio invernal tinha perpetrado entre os sem-abrigo (poucos meses antes da matança que o calor estival iria perpetrar entre os velhadas). Na rádio, um sem-abrigo com inclinações filosóficas tecia considerações sobre o expansão recente do fenómeno SDF (sans domicile fixe). Depois de uma aturada discussão do caso geral, o senhor quis partilhar a sua história pessoal. Anos de auto-análise e conversas com o cão e o candeeiro tinham-lhe permitido condensar os múltiplos factores que o levaram às ruas numa fonte fundamental: a estrutura de preços praticada pelos cafés parisienses.
Cito de memória: "Oh amigo, a culpa não é minha... eu chego ao bistrot cheio de sede, a Orangina custa quatro euros, a bejeca custa três... o que é que você fazia? Quando dei por mim era alcoólico, desempregado e batia na mulher".

terça-feira, março 09, 2004

A Nova Nova Atlântida 

O último livro do Paul Auster, "Oracle Night", recorre a um artifício formal que não tem nada de especialmente inovador: um escritor escreve sobre um escritor que escreve sobre um editor que lê o romance de outro escritor. O velho truque das bonecas russas. É o género de coisa que o Auster gosta e sabe fazer, "c'est son truc", como dizem os baguetes. Ainda não li o livro por isso não me vou pôr a comentá-lo (eu sei, isso não é obstáculo para os críticos, mas eles são profissionais; há técnicas que não domino, ensinadas na Escola de Críticos, para falar do que não se sabe). Só li a sinopse, que contém um pormenor delicioso.
O protagonista de primeiro grau, clássico autor desinspirado, encontra numa papelaria chinesa em Brooklin um bloco-notas de propriedades mágicas, que lhe desbloqueia a torrente de ideias e fluência verbal. Dado o carácter esotérico do caderninho, a sua origem não podia deixar de ser tanto quanto possível misteriosa. Noutros tempos o caderninho teria vindo da Atlântida, do Jardim do Éden, do Templo de Salomão, no séc. XIV italiano viria da China, no séc. XV português do Reino de Preste João, no séc. XVI espanhol do Eldorado, no séc. XIX britânico das Nascentes do Nilo. No céptico séc. XXI americano, em que toda a Terra parece explorada e a mitologia do séc. XX de uma Comunidade Galáctica e homenzinhos verdes perdeu fôlego, começa a ser difícil arranjar locais míticos com carisma suficiente para fazer sonhar.
"No pasa nada": se não há, inventa-se. O Auster teve de ir ao fundo da gaveta buscar um local com uma imagem suficientemente indistinta e evasiva no imaginário americano, que lhe proporcionasse matéria bruta para criar o seu próprio mito. Um nome que evoca paragens remotas, culturas perdidas, que soa algo familiar mas é convenientemente despegado de quaisquer referências concretas. Um nome que dificilmente pode ser encontrado nas etiquetas dos produtos, que não é mencionado na TV, nos jornais, um nome que não está manchado com a banalidade do quotidiano. O caderninho mágico de Auster vem de Portugal.

segunda-feira, março 01, 2004

“Du endegs nach am Gronn!”  

Milhões de turistas galgam as estradas europeias todos os anos. Vão a todo o lado. Alguns, mais intrépidos, conseguem mesmo chegar a Portugal, não desanimando com as várias centenas de quilómetros de deserto, touros Osborne e bocadillos de pão seco que têm garantido o isolamento pátrio das más influências da Europa. Muitos destes viajantes tendem a ignorar, curiosamente, o país mais rico do Mundo, mesmo passando a poucos quilómetros das suas fronteiras. Vão à Bélgica, França, Holanda, Alemanha e o tesouro escondido da Europa que é o Luxemburgo passa-lhes desapercebido. Agora percebo porquê.
No fim de semana, a Joana convenceu-me a preencher aquilo que na altura parecia uma lacuna cultural. Metemo-nos cinco na minha banhola (a viatura, portanto) e lá fomos a caminho do Luxemburgo. Quatro horas de viagem depois estávamos na capital do grão-ducado. Depois de comermos um pizza tipicamente luxemburguesa num Pizza Hut em que 90% da força de trabalho tinha nascido em Trás-os-Montes (ouvia-se a espaços um sonoro "f*da-se, c*ralho" da cozinha) dirigimo-nos com entusiasmo ao posto de informações turísticas. Aqui, uma senhora feia e pouco simpática parecia embaraçada para explicar o que haveria para ver naquela terra; acabou por passar-nos para a mão um mapa da cidade com um circuito pedestre. Os pontos de interesse eram: a estátua dourada de uma menina no cimo de uma coluna, um palácio grão-ducal copy-paste da Eurodisney (ou vice-versa, já havia Eurodisney no séc. XVI?) e uma catedral dos anos 60 desenhada num estilo misto nórdico-bizantino de gosto duvidoso. Quase não havia pessoas na rua; as que se mostravam eram geralmente feias, desleixadas e davam nitidamente a sensação de que prefeririam estar noutro lugar. Ser Luxemburguês é como ser Contabilista: ninguém gosta realmente de o ser, mas é prático, confortável e tem de calhar a alguém (este é o estereótipo superficial e irreflectido da semana, profitai).
Quando já tínhamos perdido esperança, fomos parar ao Grund, seduzidos pela fotografia numa brochura (esta, página 10) que a Charlotte roubou nas Informações. O Grund é um bairro medieval encravado num vale pitoresco; apesar de completamente deserto, era bonitinho. Diria antes... fotogénico. Tal como a Bárbara Guimarães, tinha melhor aspecto nas fotografias que ao vivo. Assustador era o título do artigo: "Um dia, acabarás no Grund!".
Cruz credo, Deus nos proteja!

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