terça-feira, janeiro 07, 2014
Taberneiro do Cartaxo prevê queda do Império Britânico
Que memorias aqui não ficaram da guerra peninsular! Que espantosas borracheiras aqui não tomaram os mais famosos generaes, os mais distinctos militares da nossa antiga e fiel alliada, que ainda então, ao menos, nos bebia o vinho!Hoje nem isso!.. hoje bebe a jacobina zurrapa de Bordeos, e as acerbas limonadas de Borgonha. Quem tal diria da conservativa Albion! Como póde uma leal goella britannica, rascada pelos acidos anarchicos d'aquellas vinagretas francezas, intoar devidamente o God-save-the-King em um toast nacional! Como, sem Porto ou Madeira, sem Lisboa, sem Cartaxo, ousa um subdito britannico erguer a voz, n'aquella harmoniosa desafinação insular que lhe é propria e que faz parte de seu respeitavel character nacional—faz; não se riam: o inglez não canta senão quando bebe… alias quando está BEBIDO. Nisi potus ad arma ruisse. Inverta: Nisi potus in cantum prorumpisse… E pois, como hade elle assim bebido erguer a voz n'aquelle sublime e tremendo hymno popular Rulle-Britannia!Bebei, bebei bem zurrapa franceza, meus amigos inglezes; bebei, bebei a pêso de oiro, essas limonadas dos burgraves e margraves de Allemanha; chamae-lhe, para vos illudir, chamae-lhe hoc, chamae-lhe hic, chamae-lhe o hic haec hoc todo, se vos dá gôsto… que em poucos annos veremos o estado de acetato a que hade ficar reduzido o vosso character nacional.Oh gente cega a quem Deus quer perder! pois não vêdes que não sois nada sem nós, que sem o nosso alchool, d'onde vos vinha espirito, sciencia, valor, ides cahir infallivelmente na antiga e priguiçosa rudeza saxonia!D'essas traidoras praias da França donde vos vai hoje o veneno corrosivo da vossa indole e da vossa fôrça, não tardará que tambem vos chegue outro Guilherme bastardo que vos conquiste e vos castigue, que vos faça arrepender, mas tarde, do criminoso êrro que hoje commetteis, ó insulares sem fe, em abandonar a nossa alliança. A nossa alliança sim, a nossa poderosa alliança, sem a qual não sois nada.O que é um inglez sem Porto ou Madeira… sem Carcavellos ou Cartaxo?Que se inspirasse Shakspeare com Lafitte, Milton com Chateaumargot—o chanceller Bacon que se dilluisse no melhor Borgonha… e veriamos os acidulos versinhos, os destemperados raciocininhos que faziam.Com todas as suas dietas, Newton nunca se lembrou de beber Johannisberg; Byron antes beberia gin, antes agua do Thamisa, ou do Pamiso, do que essas escorreduras das areias de Bordeos.Tirae-lhe o Porto aos vossos almirantes, e ninguem mais teme que torneis a ter outro Nelson. Entra nos planos do principe de Joinville fazer-vos beber da sua zurrapa: são tantos pontos de partido que lhe dais no seu jôgo.
-- Almeida Garrett, "Viagens na minha Terra", 1846
segunda-feira, dezembro 09, 2013
A jacobina zurrapa de Bordéus
For most of its history, the Haut-Médoc was a vast region of salt marshes used for animal grazing rather than viticulture. In the 17th century, Dutch merchants began an ambitious drainage project to convert the marshland into a usable vineyard area. Their objective was to provide the British market a wine alternative to the Graves and Portuguese wines that were dominating the market.-- Robinson, Jancis, ed. (2006). The Oxford Companion to Wine (3rd ed.).
segunda-feira, março 16, 2009
Escavanhar
1. v.t. esburacar metodicamente matéria mole, empregando uma colher de sobremesa ou utensílio assimilado, no intuito de a separar de um esqueleto, carapaça ou outra estrutura rígida irregular, p. ex: escavanhar uma santola;
2. v.t. assassinar alguém que cobiça a mesma pratada de percebes, empregando uma colher de sobremesa ou utensílio assimilado para vazar o globo ocular e ir por aí acima até aos miolos, p. ex: O Freitas estava-se outra vez a abifar aos meus percebes, vi-me forçado a escavanhá-lo.
2. v.t. assassinar alguém que cobiça a mesma pratada de percebes, empregando uma colher de sobremesa ou utensílio assimilado para vazar o globo ocular e ir por aí acima até aos miolos, p. ex: O Freitas estava-se outra vez a abifar aos meus percebes, vi-me forçado a escavanhá-lo.
quarta-feira, abril 16, 2008
Bit rot
Depois de anos de abandono, as centenas de comentários mordazes que ornamentavam este fórum de brejeirice dissolveram-se no éter. Horas, dias, meses de reflexão, dialéctica, pensamento profundo se esvaíram sem o consolo triste desses livros incendiados nas bibliotecas antigas, transmutados em suspensos átomos de carbono que respiramos ainda passados milénios.
sexta-feira, junho 17, 2005
A Geração Easyjet
Estreou ontem em Paris "Les Poupées Russes", uma espécie de sequela da "Residência Espanhola" de Cédric Klapisch ("Albergue Espanhol" em emigrantês). Passaram cinco anos e o estudante francês que fazia Erasmus em Barcelona, Xavier (Romain Duris, que tem uma ou duas entradas nos Celebrity Sightings deste blog), está um pouco mais crescido; mas não muito, porque hoje em dia se cresce devagarinho.
Este filme é bem capaz de ser despachado pela crítica como uma comédia geracional ligeira. E a crítica terá razão, porque é mesmo uma comédia geracional ligeira, mas especial, porque a geração é a minha.
Há uma geração europeia cujos novos padrões de vida estão sub-representados na cultura popular (leia-se: não costumamos aparecer nos filmes). Não somos os americanos que moram numa grande cidade afastada da terreola onde nasceram, lutam com os rituais ineptos do dating, só têm dois amigos e vêm a família uma vez por ano, no Thanksgiving. Também já não somos os Europeus de antanho que vivem na cidade natal e fazem ocasionalmente grandes viagens para arejar os neurónios (quando não se estão a deixar massacrar em genocídios.)
Somos ligeiramente diferentes, o suficiente para proporcionar um manancial de estereótipos praticamente inexplorado. Chamemos-lhe a geração Erasmus, a geração Inter Rail, a geração Eurostar ou Geração Easyjet. É um gajo -- também pode ser uma gaja, mas nesta geração já não sentimos necessidade dessas distinções porque entre nós a igualdade entre os sexos está adquirida e posso usar um gajo como exemplo sem ter me preocupar em ferir sensibilidades -- é portanto um gajo que nasceu num país, cresceu noutro e trabalha em dois ou três ao mesmo tempo, que muda de casa (e se for preciso de cidade ou de país) como quem muda de sapatos. É um gajo que evita acumular possessões materiais porque já sabe a trabalheira que elas dão quando chaga a hora da mudança. É um gajo que faz uma mala de viagem em dez minutos (se não for obrigado a passar camisas) e nunca chega a repor as utensílios de higiene pessoal no armário da casa de banho. É um gajo que no fim de semana vai visitar os amigos a Amesterdão, Genebra ou São Petersburgo, sendo o único critério de escolha do destino a melhor promoção para essa semana. É, sobretudo, um gajo que fala três línguas diferentes com a namorada (cinco ou seis se incluirmos todas as namoradas) , em que a língua escolhida em cada momento define a relação de forças no casal e em que nascem permutas tão idiotas como:
Este filme é bem capaz de ser despachado pela crítica como uma comédia geracional ligeira. E a crítica terá razão, porque é mesmo uma comédia geracional ligeira, mas especial, porque a geração é a minha.
Há uma geração europeia cujos novos padrões de vida estão sub-representados na cultura popular (leia-se: não costumamos aparecer nos filmes). Não somos os americanos que moram numa grande cidade afastada da terreola onde nasceram, lutam com os rituais ineptos do dating, só têm dois amigos e vêm a família uma vez por ano, no Thanksgiving. Também já não somos os Europeus de antanho que vivem na cidade natal e fazem ocasionalmente grandes viagens para arejar os neurónios (quando não se estão a deixar massacrar em genocídios.)
Somos ligeiramente diferentes, o suficiente para proporcionar um manancial de estereótipos praticamente inexplorado. Chamemos-lhe a geração Erasmus, a geração Inter Rail, a geração Eurostar ou Geração Easyjet. É um gajo -- também pode ser uma gaja, mas nesta geração já não sentimos necessidade dessas distinções porque entre nós a igualdade entre os sexos está adquirida e posso usar um gajo como exemplo sem ter me preocupar em ferir sensibilidades -- é portanto um gajo que nasceu num país, cresceu noutro e trabalha em dois ou três ao mesmo tempo, que muda de casa (e se for preciso de cidade ou de país) como quem muda de sapatos. É um gajo que evita acumular possessões materiais porque já sabe a trabalheira que elas dão quando chaga a hora da mudança. É um gajo que faz uma mala de viagem em dez minutos (se não for obrigado a passar camisas) e nunca chega a repor as utensílios de higiene pessoal no armário da casa de banho. É um gajo que no fim de semana vai visitar os amigos a Amesterdão, Genebra ou São Petersburgo, sendo o único critério de escolha do destino a melhor promoção para essa semana. É, sobretudo, um gajo que fala três línguas diferentes com a namorada (cinco ou seis se incluirmos todas as namoradas) , em que a língua escolhida em cada momento define a relação de forças no casal e em que nascem permutas tão idiotas como:
Wendy, a inglesa - J'ai fini!
Xavier, o francês - Super bueno!...
domingo, fevereiro 20, 2005
Sentido Cívico é...
...Fazer três mil e seiscentos quilómetros em dois dias para votar em branco.
sexta-feira, janeiro 28, 2005
X
Sete filmes partilham o título "X". Um filme de série B americano, um manga japonês, um drama norueguês, uma comédia romântica coreana, uma curta francesa, um policial espanhol e um filme de um misterioso C. Walsh cuja carreira de realizador durou apenas os anos de 69 e 70. Nenhum era pornográfico. Todos eles fracassaram.
sexta-feira, outubro 29, 2004
Conan o Homem-Rã
Disclaimer
Sem correr o risco de corromper o espírito editorial deste blog, porque este blog não tem espírito editorial, a minha próxima posta demarca-se de todas as outras pela motivação. Pela primeira vez, a Baguete afasta-se do exercício do ego do autor para se dedicar por instantes ao Serviço Público.
Atacado por um fugaz arrepio de saudade, cantarolava em surdina uma cantiga, uma cantiga não, um Hino que reside no coração de todo o bom Português, "Conan o Homem-Rã". Falhavam-me algumas palavras, aqui e ali, e com medo de macular a perfeição poética de tão egrégias estrofes, prontamente recorri ao google na certeza de aí encontrar a versão integral de um texto basilar da lusofonia. Mas, Oh Ignomínia!, sai-me isto:"Your search - paneleiros fregueses indonésia anã - did not match any documents." Seria possível? "brumas memória canhões marchar": 475 resultados, "armas barões taprobana tágides": 79, "salgado lágrimas noivas casar": 75, mas "paneleiros fregueses indonésia anã" nada!...
Indignado por esta lacuna gravíssima, o que pode fazer um genuíno português? Pôr as culpas no Governo e ir para casa bater na mulher? Pois, de facto é isso... mas como não sou casado e estou no estrangeiro e ninguém está a ver, decidi-me a agir! Pedi ao meu grande amigo BMS para ripar a cantiga (não te chateies, Manel João, é para teu bem), e publicarei aqui a transcrição indispensável de "Conan o Homem-Rã".
Sei bem que a temática brejeira e o nível de línguagem deveras familiar poderão atrair a este blog um horda de ígnaros boçais pouco desejáveis numa casa de respeito, mas o Bem da Nação está acima dos interesses mundanos desta Baguete.
Sem mais delongas vos apresento em première internáutica, o texto integral de:
"Conan o Homem-Rã"
Escolha uma cadeira, coma um pudim-flã. Vai ouvir a história de Conan o Homem-Rã.
Escolha uma cadeira,
coma um pudim-flã,
vai ouvir a história
de Conan o Homem-Rã,
Conan o Homem-Rã,
herói da Trafaria,
nascido sem mamã,
era filho de uma tia.
(Conan, Conan, Conan o Homem-Rã)
bis
A sua namorada
era uma indonésia anã.
Dizia a rapaziada:
"Olha a miúda do Conan!"
Era debochada,
não tinha sutiã,
Tinha a cona assada
de foder toda a manhã.
(Conan, Conan, Conan o Homem-Rã)
Não fazia escolhas,
fodia com tudo:
estucadores e trolhas,
até um surdo-mudo.
Era pelos campos,
era pelas hortas,
o pobre Conan
já não cabia nas portas!
(Conan, Conan, Conan o Homem-Rã)
Um dia pensou:
"O que é que hei-de fazer?
Foda-se já sei,
vou comprar um fecho-éclair."
Enquanto ela dormia,
coseu-lho na vulva.
"Sem pagar portagem
não passa aqui uma pulga."
(Conan, Conan, Conan o Homem-Rã)
Foram lá escuteiros,
foram japoneses...
só os paneleiros
é que não eram fregueses.
Era todo o dia
sempre adentro e fora
e o Conan dizia:
"Crise, qual crise?!"
(Conan, Conan, Conan o Homem-Rã)
Eh pá, pôs-lhe um contador
mesmo ao pé da greta.
Fez-se milionário
tornou-se forreta.
Esta é uma história
plena de sucesso.
Não temos memória
de maior burgesso!
(Conan, Conan, Conan o Homem-Rã)
Irmãos Catita
Conan o Homem-Rã imortalizado em bronze nos jardins de Versalhes. Já Luís XIV nutria profunda admiração por esta personagem mítica.
Sem correr o risco de corromper o espírito editorial deste blog, porque este blog não tem espírito editorial, a minha próxima posta demarca-se de todas as outras pela motivação. Pela primeira vez, a Baguete afasta-se do exercício do ego do autor para se dedicar por instantes ao Serviço Público.
Atacado por um fugaz arrepio de saudade, cantarolava em surdina uma cantiga, uma cantiga não, um Hino que reside no coração de todo o bom Português, "Conan o Homem-Rã". Falhavam-me algumas palavras, aqui e ali, e com medo de macular a perfeição poética de tão egrégias estrofes, prontamente recorri ao google na certeza de aí encontrar a versão integral de um texto basilar da lusofonia. Mas, Oh Ignomínia!, sai-me isto:"Your search - paneleiros fregueses indonésia anã - did not match any documents." Seria possível? "brumas memória canhões marchar": 475 resultados, "armas barões taprobana tágides": 79, "salgado lágrimas noivas casar": 75, mas "paneleiros fregueses indonésia anã" nada!...
Indignado por esta lacuna gravíssima, o que pode fazer um genuíno português? Pôr as culpas no Governo e ir para casa bater na mulher? Pois, de facto é isso... mas como não sou casado e estou no estrangeiro e ninguém está a ver, decidi-me a agir! Pedi ao meu grande amigo BMS para ripar a cantiga (não te chateies, Manel João, é para teu bem), e publicarei aqui a transcrição indispensável de "Conan o Homem-Rã".
Sei bem que a temática brejeira e o nível de línguagem deveras familiar poderão atrair a este blog um horda de ígnaros boçais pouco desejáveis numa casa de respeito, mas o Bem da Nação está acima dos interesses mundanos desta Baguete.
Sem mais delongas vos apresento em première internáutica, o texto integral de:
"Conan o Homem-Rã"
Escolha uma cadeira, coma um pudim-flã. Vai ouvir a história de Conan o Homem-Rã.
Escolha uma cadeira,
coma um pudim-flã,
vai ouvir a história
de Conan o Homem-Rã,
Conan o Homem-Rã,
herói da Trafaria,
nascido sem mamã,
era filho de uma tia.
(Conan, Conan, Conan o Homem-Rã)
bis
A sua namorada
era uma indonésia anã.
Dizia a rapaziada:
"Olha a miúda do Conan!"
Era debochada,
não tinha sutiã,
Tinha a cona assada
de foder toda a manhã.
(Conan, Conan, Conan o Homem-Rã)
Não fazia escolhas,
fodia com tudo:
estucadores e trolhas,
até um surdo-mudo.
Era pelos campos,
era pelas hortas,
o pobre Conan
já não cabia nas portas!
(Conan, Conan, Conan o Homem-Rã)
Um dia pensou:
"O que é que hei-de fazer?
Foda-se já sei,
vou comprar um fecho-éclair."
Enquanto ela dormia,
coseu-lho na vulva.
"Sem pagar portagem
não passa aqui uma pulga."
(Conan, Conan, Conan o Homem-Rã)
Foram lá escuteiros,
foram japoneses...
só os paneleiros
é que não eram fregueses.
Era todo o dia
sempre adentro e fora
e o Conan dizia:
"Crise, qual crise?!"
(Conan, Conan, Conan o Homem-Rã)
Eh pá, pôs-lhe um contador
mesmo ao pé da greta.
Fez-se milionário
tornou-se forreta.
Esta é uma história
plena de sucesso.
Não temos memória
de maior burgesso!
(Conan, Conan, Conan o Homem-Rã)
Irmãos Catita
Conan o Homem-Rã imortalizado em bronze nos jardins de Versalhes. Já Luís XIV nutria profunda admiração por esta personagem mítica.
quarta-feira, outubro 20, 2004
Auf Wiedersehen Lufthansa
Os dias do jet-set estão definitivamente acabados.
Este fim de semana fui a Barcelona. O vôo custou-me trinta euros, os autocarros de ligação custaram quarenta.
Os aeroportos eram ridículos.
Do lado francês, a sala de embarque é um avançado, daqueles que os velhotes enxertam às roulottes no parque de campismo da Costa da Caparica para instalar o barbecue, as cadeiras de praia, a mesa com pano de plástico florido e a televisão estridente cuja antena tem de ser reorientada a cada vez que se muda da telenovela para a bola. As pessoas vão a correr pela pista até ao avião. É chato quando chove.
Do lado catalão (sem link, porque este aeroporto nem site tem), o cartão de embarque é certamente o mais patético do mundo ocidental. Consiste numa senha azul com um carimbo que evoca as rifas da comissão de curso para financiar a viagem de finalistas. Aquelas rifas que, misteriosamente, nunca dão prémio.
Em tempos idos, os aviões tinham nomes dignos e respeitáveis como Lusitânia ou Espírito de São Luís. Nomes de santos, líderes, descobridores, gente íntegra e valerosa (ou que parecia íntegra e valerosa).
Este foi o avião que me trouxe de Barcelona:
Este fim de semana fui a Barcelona. O vôo custou-me trinta euros, os autocarros de ligação custaram quarenta.
Os aeroportos eram ridículos.
Do lado francês, a sala de embarque é um avançado, daqueles que os velhotes enxertam às roulottes no parque de campismo da Costa da Caparica para instalar o barbecue, as cadeiras de praia, a mesa com pano de plástico florido e a televisão estridente cuja antena tem de ser reorientada a cada vez que se muda da telenovela para a bola. As pessoas vão a correr pela pista até ao avião. É chato quando chove.
Do lado catalão (sem link, porque este aeroporto nem site tem), o cartão de embarque é certamente o mais patético do mundo ocidental. Consiste numa senha azul com um carimbo que evoca as rifas da comissão de curso para financiar a viagem de finalistas. Aquelas rifas que, misteriosamente, nunca dão prémio.
Em tempos idos, os aviões tinham nomes dignos e respeitáveis como Lusitânia ou Espírito de São Luís. Nomes de santos, líderes, descobridores, gente íntegra e valerosa (ou que parecia íntegra e valerosa).
Este foi o avião que me trouxe de Barcelona:
quinta-feira, outubro 14, 2004
Sport Stats
No recente jogo contra o Liechtenstein, Portugal foi vítima de uma tremenda injustiça que não posso deixar passar em branco. Os organismos reguladores do futebol têm prestar atenção de uma vez por todas!
O Liechtenstein tem 33 436 habitantes, menos que a freguesia de São Domingos de Benfica. A idade mediana para os homens é de 38,3 anos. 2862 homens têm entre 0 e 14 anos. Combinando estes números e tendo em conta que nesta faixa etária a proporção homens/mulheres é praticamente de um para um, calculo que o número de cidadãos do sexo masculino entre os 15 e os 38 anos seja de 4991. Admitindo que destes, 10% são deficientes (a percentagem que encontrei em países desenvolvidos da Europa e América do Norte) restam-nos 4492 pessoas. As estatísticas para a obesidade e excesso de peso na Europa são discordantes, mas não encontrei valores abaixo dos 20% para esta faixa etária. Fazendo a coisa por baixo, depois de descontar os badochas restam-nos no máximo 3594 pessoas. Os homossexuais, como é sabido, são avessos a desportos de contacto, pelo que vou tirá-los da lista; as associações gay dizem que são 10% da população, os fanáticos da direita radical dão 3%, fazendo a coisa por 5%, dá-me 178 larilas que desprezam a bola. Se a isto juntarmos os 18 presos e os 204 drogados (excluindo o doping de competição senão ficamos sem atletas), resta-nos o patético número de 3192 homens livres, relativamente saudáveis e com uma idade minimamente realista para jogar à bola em todo o Liechtenstein. Noto que festas de casamento na Tailândia levam mais gente que isso. Quer isto dizer que um liechtensteiniano em cada duzentos estava em campo contra Portugal.
Perante uma proporção tão devastadora, necessitaríamos de 50 000 pessoas no relvado para tornar o desafio minimamente justo e equilibrado. Isto não pode continuar, está na hora de repor a verdade do jogo!
O Liechtenstein tem 33 436 habitantes, menos que a freguesia de São Domingos de Benfica. A idade mediana para os homens é de 38,3 anos. 2862 homens têm entre 0 e 14 anos. Combinando estes números e tendo em conta que nesta faixa etária a proporção homens/mulheres é praticamente de um para um, calculo que o número de cidadãos do sexo masculino entre os 15 e os 38 anos seja de 4991. Admitindo que destes, 10% são deficientes (a percentagem que encontrei em países desenvolvidos da Europa e América do Norte) restam-nos 4492 pessoas. As estatísticas para a obesidade e excesso de peso na Europa são discordantes, mas não encontrei valores abaixo dos 20% para esta faixa etária. Fazendo a coisa por baixo, depois de descontar os badochas restam-nos no máximo 3594 pessoas. Os homossexuais, como é sabido, são avessos a desportos de contacto, pelo que vou tirá-los da lista; as associações gay dizem que são 10% da população, os fanáticos da direita radical dão 3%, fazendo a coisa por 5%, dá-me 178 larilas que desprezam a bola. Se a isto juntarmos os 18 presos e os 204 drogados (excluindo o doping de competição senão ficamos sem atletas), resta-nos o patético número de 3192 homens livres, relativamente saudáveis e com uma idade minimamente realista para jogar à bola em todo o Liechtenstein. Noto que festas de casamento na Tailândia levam mais gente que isso. Quer isto dizer que um liechtensteiniano em cada duzentos estava em campo contra Portugal.
Perante uma proporção tão devastadora, necessitaríamos de 50 000 pessoas no relvado para tornar o desafio minimamente justo e equilibrado. Isto não pode continuar, está na hora de repor a verdade do jogo!
segunda-feira, outubro 11, 2004
Celebrity Sightings
A Elsa Pataky só é celebrity em Espanha. Eu, pelo menos, nunca tinha ouvido falar. Por isso cometi a heresia social de lhe perguntar o nome três vezes até que a resposta indignadamente reiterada sobrepusesse o charivari infernal que os DJs da Terrrazza de Barcelona trouxeram ao Queen na sexta passada. Ainda assim voltei para casa convencido que o nome era Eva Bategui.
segunda-feira, outubro 04, 2004
Ontologia
Num jantar infestado de espanhóis, fui confrontado com uma personagem curiosa. Tendo crescido este senhor em Tânger, no seio de uma família de origem aragonesa, e vivendo desde há pouco em Madrid, ostentava um cerradíssimo e paradoxal sotaque andaluz, que o próprio admitia mas que não sabia explicar. Metade das palavras eram calão, as outras cortava-as a meio; tinha sempre o cuidado de não pronunciar as consoantes.
Alegava estudar Ontologia.
Intrigou-me que tal disciplina pudesse ser objecto de uma licenciatura mas, no espírito aberto e tolerante que me caracteriza, concedi que se pode haver uma licenciatura em Psicopedagogia Curativa, também não será difícil arranjar maneira de esticar a Ontologia até render cinco anos de propinas. Fiquei muito contente porque podia explorar com tão douto interlocutor alguns dos problemas metafísicos que me vinham atormentando a alma e fazendo perder o sono. Para começar, achei por bem lançar a problemática da classificação da realidade em categorias estáticas e necessariamente duvidosas, evocando esta passagem de Borges:
Essas ambiguidades, redundâncias e deficiências recordam as que o doutor Franz Kuhn atribui a certa enciclopédia chinesa intitulada "Empório celestial dos conhecimentos benévolos". Nas suas remotas páginas consta que os animais se dividem em (a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães vadios, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados com um finíssino pincel de pêlo de camelo, (l) etcétera, (m) que acabam de partir a bilha, (n) que de longe parecem moscas.
J. L. Borges, "O Idioma Analítico de John Wilkins", in "Outras Inquirições", trad. Baguete
Interpelado de forma tão pertinente, o espanhol olhou-me nitidamente abalado, abriu a boca para falar, hesitou, abanou a cabeça e disse (transcrevo para castelhano corrente os bárbaros balbuciamentos andaluzes): "De que coño me estás hablando, tío? Ontología?? Estoy estudiando Odontología! Dientes, imbecil!"
Alegava estudar Ontologia.
Intrigou-me que tal disciplina pudesse ser objecto de uma licenciatura mas, no espírito aberto e tolerante que me caracteriza, concedi que se pode haver uma licenciatura em Psicopedagogia Curativa, também não será difícil arranjar maneira de esticar a Ontologia até render cinco anos de propinas. Fiquei muito contente porque podia explorar com tão douto interlocutor alguns dos problemas metafísicos que me vinham atormentando a alma e fazendo perder o sono. Para começar, achei por bem lançar a problemática da classificação da realidade em categorias estáticas e necessariamente duvidosas, evocando esta passagem de Borges:
Essas ambiguidades, redundâncias e deficiências recordam as que o doutor Franz Kuhn atribui a certa enciclopédia chinesa intitulada "Empório celestial dos conhecimentos benévolos". Nas suas remotas páginas consta que os animais se dividem em (a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães vadios, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados com um finíssino pincel de pêlo de camelo, (l) etcétera, (m) que acabam de partir a bilha, (n) que de longe parecem moscas.
J. L. Borges, "O Idioma Analítico de John Wilkins", in "Outras Inquirições", trad. Baguete
Interpelado de forma tão pertinente, o espanhol olhou-me nitidamente abalado, abriu a boca para falar, hesitou, abanou a cabeça e disse (transcrevo para castelhano corrente os bárbaros balbuciamentos andaluzes): "De que coño me estás hablando, tío? Ontología?? Estoy estudiando Odontología! Dientes, imbecil!"
quarta-feira, agosto 04, 2004
Laetitia Connection
Quarta-feira, dia 23 de Junho, pelas oito e meia da noite, cheguei à porta de casa com uma sanduíche grecque na mão direita e uma revista, javardamente adornada de nódoas oleosas, na esquerda. Mais tarde viria a descobrir que não era só para a revista que a gordura da sanduíche grecque pingava mas também para a perna direita das calças e boa parte da camisa; no momento que descrevo, porém, gozava ainda a felicidade fátua da ignorância.
No que respeita à ofensiva origem étnica da sandocha* -- e antes que a mais esquiva suspeita ameace ensombrar o meu bom nome de patriota -- convém assinalar que nesta altura os tristes acontecimentos de 4 de julho ainda estavam longe de se prever; asseguro que a partir desse dia mantive um estrito boicote a produtos de origem ou inspiração helénica, tendo mesmo abandonado a leitura da Anábase de Xenofonte** num dos pontos mais emocionantes da récita.
Abri então a porta, não sem algumas dificuldades -- pois segurando a sandocha com uma mão e a revista com outra mão, num total de duas mãos, não sobra membro livre para manipular chave e maçaneta. Lá me arranjei, usando métodos pouco elegantes que decerto não contribuíram para o asseio da minha indumentária. Ao fim de três parágrafos e duas notas de rodapé de verborreia, entrei em casa. Esperava-me a seguinte mensagem no atendedor de chamadas:
Como não percebo bem francês, não sei se ela queria falar com o William se com a Laetitia. Se queria falar com a Laetitia eu não a podia ajudar, já não a via desde o pequeno-almoço de domingo; do William nunca tinha ouvido falar. Posto isto, resolvi não responder.
Infelizmente, a história não ficou por aqui. Nos dias seguintes, a senhora telefonou com insistência. Em algumas dessas ocasiões, a Pátchi, que trabalha por turnos e tem direito ao seu descanso, foi repetidamente obrigada a acordar para atender o telefone. Repetidamente, explicou em bom francês que ali não morava nenhum William. Repetidamente, foi ignorada. Ficou claro que não era a agente do William que procurava a Laetitia, era a agente da Laetitia que procurava o William. Assustei-me momentaneamente, pensando que a rapariga poderia estar grávida e à procura do pai da criança, mas rapidamente me apercebi do absurdo dessa hipótese: nesse caso seria o advogado a ligar.
Decidido a resolver esta situação, fiz o que faço quando não faço ideia do que fazer: google "William Klein". O google vomitou-me no topo da lista um fotógrafo famoso. Mais que famoso: um Master of Photography. Portanto famoso, rico e prestes a esticar o pernil. Uma vez que o homem é fotógrafo e mora em Paris, faz algum sentido que se envolva em negócios com a Laetitia, o que empresta credibilidade ao enredo.
Claro que esta descoberta não resolveu em nada o meu problema; ajudou-me todavia a sentir-me parte da teia universal de ligações, objectos, coincidências, personagens, lapsos e omissões que fazem a História, coisa que nunca teria conseguido fazer recorrendo a talento próprio, criativadade ou capacidade de trabalho, qualidades de que Deus Nosso Senhor se absteve de me dotar.
Depois de algumas semanas de silêncio, que cheguei a julgar definitivo, uma nova mensagem:
O fiel e persistente leitor da Baguete, aquele que sobrevive meritosamente apesar da penúria de postas, é assim recompensado com algumas pepitas de informação privilegiada e em primeira mão. Fica a saber:
*Os leitores mais argutos terão já intuído que a expressão "sanduíche grecque", ofuscada pelo erudito termo estrangeiro grecque, designa na verdade uma vulgar sanduíche grega, gyros em Grego, le sandwich grec em Francês. Pode parecer estranho que, em Francês, "sandwich" seja uma palavra masculina, mas lembro que por cá as sanduíches recorrem primordialmente ao pão-baguete, de morfologia indisfarçavelmente viril.
**Obra que descreve a regresso atribulado dos dez mil mercenários gregos que sobreviveram à derrota de Cunaxa. Pronuncia-se cunacsa, não se prestando por isso a trocadilhos grosseiros com a pronúncia de Viseu. Xenofonte, o autor, foi um dos líderes desta expedição e refere-se a si próprio na terceira pessoa -- "Xenofonte ofereceu sacrifício a Apolo", "Xenofonte deu ordem para atacar" -- prenunciando o estilo literário de Jardel.
No que respeita à ofensiva origem étnica da sandocha* -- e antes que a mais esquiva suspeita ameace ensombrar o meu bom nome de patriota -- convém assinalar que nesta altura os tristes acontecimentos de 4 de julho ainda estavam longe de se prever; asseguro que a partir desse dia mantive um estrito boicote a produtos de origem ou inspiração helénica, tendo mesmo abandonado a leitura da Anábase de Xenofonte** num dos pontos mais emocionantes da récita.
Abri então a porta, não sem algumas dificuldades -- pois segurando a sandocha com uma mão e a revista com outra mão, num total de duas mãos, não sobra membro livre para manipular chave e maçaneta. Lá me arranjei, usando métodos pouco elegantes que decerto não contribuíram para o asseio da minha indumentária. Ao fim de três parágrafos e duas notas de rodapé de verborreia, entrei em casa. Esperava-me a seguinte mensagem no atendedor de chamadas:
Message du 0156891200 reçu hier à 12:31
Oui, bonjour, c'est Monique Uznatov pour William Klein à propos de Laetitia Casta. Vous pouvez me rapeller au 0156891200 ou également mon portable 0680459932. Merci, au revoir!
Como não percebo bem francês, não sei se ela queria falar com o William se com a Laetitia. Se queria falar com a Laetitia eu não a podia ajudar, já não a via desde o pequeno-almoço de domingo; do William nunca tinha ouvido falar. Posto isto, resolvi não responder.
Infelizmente, a história não ficou por aqui. Nos dias seguintes, a senhora telefonou com insistência. Em algumas dessas ocasiões, a Pátchi, que trabalha por turnos e tem direito ao seu descanso, foi repetidamente obrigada a acordar para atender o telefone. Repetidamente, explicou em bom francês que ali não morava nenhum William. Repetidamente, foi ignorada. Ficou claro que não era a agente do William que procurava a Laetitia, era a agente da Laetitia que procurava o William. Assustei-me momentaneamente, pensando que a rapariga poderia estar grávida e à procura do pai da criança, mas rapidamente me apercebi do absurdo dessa hipótese: nesse caso seria o advogado a ligar.
Decidido a resolver esta situação, fiz o que faço quando não faço ideia do que fazer: google "William Klein". O google vomitou-me no topo da lista um fotógrafo famoso. Mais que famoso: um Master of Photography. Portanto famoso, rico e prestes a esticar o pernil. Uma vez que o homem é fotógrafo e mora em Paris, faz algum sentido que se envolva em negócios com a Laetitia, o que empresta credibilidade ao enredo.
Claro que esta descoberta não resolveu em nada o meu problema; ajudou-me todavia a sentir-me parte da teia universal de ligações, objectos, coincidências, personagens, lapsos e omissões que fazem a História, coisa que nunca teria conseguido fazer recorrendo a talento próprio, criativadade ou capacidade de trabalho, qualidades de que Deus Nosso Senhor se absteve de me dotar.
Depois de algumas semanas de silêncio, que cheguei a julgar definitivo, uma nova mensagem:
Message du 0156841200 reçu jeudi 29 Juillet à 17:47
Ouiii... coucou William, c'est Monique! Euhhhh... bah écoute, j'ai reçu tous les tirages. Vraiment elle a (issue?) vraiment bien, maintenaint, vraiment. Merci pour le livre dédi...dé...dicacé, que je... voilà... ça ça m'a vraiment touché. Et puis, bon, on se reparle. Je suis au bureau, je suis à l'agence.
O fiel e persistente leitor da Baguete, aquele que sobrevive meritosamente apesar da penúria de postas, é assim recompensado com algumas pepitas de informação privilegiada e em primeira mão. Fica a saber:
- Que vão sair em breve fotografias novas da Laetitia pelo William, que pelos vistos estão "vraiment bien";
- Que os agentes de modelos gostam muito de dizer "vraiment" (ou será só a Monique?)
- Que ao fim de um mês a relação da Monique e o William já dá direito a "coucou", mas já sabemos que isto no meio artístico é uma salganhada;
- Que a Laetitia, a agente da Laetitia e o fotógrafo da Laetitia moram todos no meu bairro;
- O número do telefone e do telemóvel da agente da Laetitia (dai-lhe o uso que quiserdes, desde que não digam que veio daqui)
*Os leitores mais argutos terão já intuído que a expressão "sanduíche grecque", ofuscada pelo erudito termo estrangeiro grecque, designa na verdade uma vulgar sanduíche grega, gyros em Grego, le sandwich grec em Francês. Pode parecer estranho que, em Francês, "sandwich" seja uma palavra masculina, mas lembro que por cá as sanduíches recorrem primordialmente ao pão-baguete, de morfologia indisfarçavelmente viril.
**Obra que descreve a regresso atribulado dos dez mil mercenários gregos que sobreviveram à derrota de Cunaxa. Pronuncia-se cunacsa, não se prestando por isso a trocadilhos grosseiros com a pronúncia de Viseu. Xenofonte, o autor, foi um dos líderes desta expedição e refere-se a si próprio na terceira pessoa -- "Xenofonte ofereceu sacrifício a Apolo", "Xenofonte deu ordem para atacar" -- prenunciando o estilo literário de Jardel.
quinta-feira, junho 24, 2004
Stick of Bread
Para os menos atentos, o nome deste blog, "Baguete", tem viva raiz etimológica no francês "baguette", mais precisamente na sua acepção de "pão de trigo a mandar para o comprido, tipo 'cacete' mas não é bem a mesma coisa, porque é francês". Há quem o considere mesmo um galicismo gratuito, quem ache que o "cacete" português dá bem conta do recado. Evito esse debate — o que questiona se o cacete português dá ou não conta do recado — não tanto por ser irrelevante para a argumentação que se segue (a irrelevância é uma qualidade que prezo particularmente), mas antes pela inexistência de levantamentos estatísticos sérios, lacuna grave na literatura da especialidade.
Antes que me volte a distrair do objectivo da posta, urge enunciá-lo: venho orgulhosamente assinalar, na minha qualidade de emissário infiltrado numa cultura estrangeira, o sucesso retumbante dos esforços desempenhados pelos organismos públicos portugueses com vista a melhorar a visibilidade e imagem do País e propagar a Cultura Lusa pelos quatro cantos do Mundo! Tarefa por demais complicada, sendo o Mundo redondo. (Mas o Português não gosta de tarefas fáceis. Tem-lhes tanto desprezo que protela qualquer tipo de intervenção até que elas se tornem difíceis e, por isso, dignas.)
A coisa do Euro, por exemplo, não tem passado despercebida. É certo que alguma confusão perdura nas cabeças menos cultivadas, como é o caso de um comentador de televisão que referia que uma das grandes vantagens da equipa espanhola no jogo com a Grécia seria o facto de jogar em casa. Mas jornalistas desportivos são bestas em qualquer parte do mundo: se os nossos podem dizer o nome dos jogadores alemães com pronúncia inglesa, os deles têm todo o direito de dizer "Nuño Gomez". Têm o direito e exercem-no com brio. Aprecio especialmente o esforço hercúleo que fazem para pronunciar os jotas à espanhola, quando os jotas portugueses lhes induziriam menos cãibras na língua.
Felizmente, estamos a atacar também noutras frentes. Manobra sensata, a diversificação. Uma delas é a divulgação da Língua ou, pelo menos, de uma das Línguas. Se para a Língua Portuguesa optámos por uma estratégia clássica de ataque directo e aberto, através do Instituto Camões (que não está a resultar), para a nossa segunda língua oficial recorremos às melhores técnicas de espionagem e infiltração. Sem que se possa descortinar qualquer actividade aparente, os efeitos são visíveis. Em particular sou orgulhosa testemunha de um golpe infligido bem no coração do inimigo! Talvez não a estocada mortal de uma lança, mas apenas uma agulhada que indicia o começo de coisas maiores. Estou a ficar tão nervoso a contar isto que até vou mudar de parágrafo.
Domingo à tarde fui curar a ressaca para uma brasserie. Até aqui nada de invulgar. Aliás, de semana para semana, o único componente variável nesta frase é "uma brasserie". Esta brasserie situava-se praça da Sorbonne, a bonitinha com a fonte. A Sorbonne, que como alguns saberão (mas certamente não os iletrados que vêm ler este blog) é uma Universidade, é a menina dos olhos da cultura francesa e o grão de areia a partir da qual cresceu em sucessivas camadas de nácar a pérola que é a Rive Gauche (que bonita metáfora, estou pronto para começar a escrever letras para os Toranja). Depois de trocar algumas palavras com o empregado de mesa, a minha fluência na língua francesa e pronúncia irrepreensível fizeram-se certamente notar. O senhor trouxe-nos portanto o menu em inglês. Em inglês, pensava eu... Foi nesta altura, e treme-me a voz ao falar nisto, que reconheci com um assomo de nostalgia uma das nossas línguas pátrias, talvez não a historicamente mais importante, talvez não a que tem uma literatura mais rica, mas não obstante, uma das Nossas. O menu daquela brasserie aninhada sob a sombra pesada da Sorbonne — que digo eu, "brasserie", era o "L'Escholier", um dos cafés-philo de Marc Sautet, o tasco onde se reunem os contestatários do Goncourt para ler Céline!... — este menu, dizia eu, estava escrito no mais puro e refinado Inglês do Algarve.
Não vendiam sanduíches em baguette, nem baguete, nem cacete, vendiam...
Antes que me volte a distrair do objectivo da posta, urge enunciá-lo: venho orgulhosamente assinalar, na minha qualidade de emissário infiltrado numa cultura estrangeira, o sucesso retumbante dos esforços desempenhados pelos organismos públicos portugueses com vista a melhorar a visibilidade e imagem do País e propagar a Cultura Lusa pelos quatro cantos do Mundo! Tarefa por demais complicada, sendo o Mundo redondo. (Mas o Português não gosta de tarefas fáceis. Tem-lhes tanto desprezo que protela qualquer tipo de intervenção até que elas se tornem difíceis e, por isso, dignas.)
A coisa do Euro, por exemplo, não tem passado despercebida. É certo que alguma confusão perdura nas cabeças menos cultivadas, como é o caso de um comentador de televisão que referia que uma das grandes vantagens da equipa espanhola no jogo com a Grécia seria o facto de jogar em casa. Mas jornalistas desportivos são bestas em qualquer parte do mundo: se os nossos podem dizer o nome dos jogadores alemães com pronúncia inglesa, os deles têm todo o direito de dizer "Nuño Gomez". Têm o direito e exercem-no com brio. Aprecio especialmente o esforço hercúleo que fazem para pronunciar os jotas à espanhola, quando os jotas portugueses lhes induziriam menos cãibras na língua.
Felizmente, estamos a atacar também noutras frentes. Manobra sensata, a diversificação. Uma delas é a divulgação da Língua ou, pelo menos, de uma das Línguas. Se para a Língua Portuguesa optámos por uma estratégia clássica de ataque directo e aberto, através do Instituto Camões (que não está a resultar), para a nossa segunda língua oficial recorremos às melhores técnicas de espionagem e infiltração. Sem que se possa descortinar qualquer actividade aparente, os efeitos são visíveis. Em particular sou orgulhosa testemunha de um golpe infligido bem no coração do inimigo! Talvez não a estocada mortal de uma lança, mas apenas uma agulhada que indicia o começo de coisas maiores. Estou a ficar tão nervoso a contar isto que até vou mudar de parágrafo.
Domingo à tarde fui curar a ressaca para uma brasserie. Até aqui nada de invulgar. Aliás, de semana para semana, o único componente variável nesta frase é "uma brasserie". Esta brasserie situava-se praça da Sorbonne, a bonitinha com a fonte. A Sorbonne, que como alguns saberão (mas certamente não os iletrados que vêm ler este blog) é uma Universidade, é a menina dos olhos da cultura francesa e o grão de areia a partir da qual cresceu em sucessivas camadas de nácar a pérola que é a Rive Gauche (que bonita metáfora, estou pronto para começar a escrever letras para os Toranja). Depois de trocar algumas palavras com o empregado de mesa, a minha fluência na língua francesa e pronúncia irrepreensível fizeram-se certamente notar. O senhor trouxe-nos portanto o menu em inglês. Em inglês, pensava eu... Foi nesta altura, e treme-me a voz ao falar nisto, que reconheci com um assomo de nostalgia uma das nossas línguas pátrias, talvez não a historicamente mais importante, talvez não a que tem uma literatura mais rica, mas não obstante, uma das Nossas. O menu daquela brasserie aninhada sob a sombra pesada da Sorbonne — que digo eu, "brasserie", era o "L'Escholier", um dos cafés-philo de Marc Sautet, o tasco onde se reunem os contestatários do Goncourt para ler Céline!... — este menu, dizia eu, estava escrito no mais puro e refinado Inglês do Algarve.
Não vendiam sanduíches em baguette, nem baguete, nem cacete, vendiam...
quinta-feira, maio 27, 2004
Le foot, on s'en fout!
A populaça furiosa que anda a gritar "Allez champions!" desde 1998, dedica todo o seu interesse, desde as 23h (GMT+1) de ontem, a Roland Garros, às corridas de Longchamp e ao grande desporto nacional, o rugby. Aliás, aproxima-se a data de abertura do Torneio das Seis Nações, em Fevereiro de 2005, e já se sente a emoção nas ruas. Le foot, on s'en fout. Porque um Francês nunca perde em nada! Em nada que interesse. (O Napoleão só largou a Rússia porque percebeu que com aquela porcaria de tempo não ia dar para plantar endívias.)
sexta-feira, abril 16, 2004
Os que me julgam morto...
...lamento desiludir. Desde a última posta: fui de patins a Amesterdão, tive uma experiência mística no Concertgebouw, troquei ideias com alucinados, entrei num filme chinês, pisei o Paulo Branco no metro, pedi desculpa, abri a temporada de piqueniques à beira do Sena, vi fazer windsurf com ventoínhas, aprendi uma linguagem de programação inspirada numa troupe de dementes geniais, debati-me com as hierarquias avunculares que esclerosam o tecido empresarial português, lembrei-me como é bom trabalhar em Paris, lembrei-me como é bom morar em Paris, lembrei-me como é bom ter nascido em Lisboa, ajudei vinte e dois turistas a orientar-se no meu bairro, fui sete vezes à Favela, confirmei que o Tchiky merece a Légion d'Honneur e que o Zero merece as galeras. O caos no meu quarto assumiu proporções de catástrofe natural, adoptei o sistema "just in time" para a passagem de roupa, não resultou, não vejo televisão há três semanas porque não encontro o controle remoto, o meu chinelo esquerdo emancipou-se e mudou de casa, a minha flete-meite queixa-se que apanhou pulgas no meu laptop.
Não há tempo para linques nem revisão ortográfica, tenho um avião para Milão à minha espera, espero que espere, da última vez não esperou.
Não há tempo para linques nem revisão ortográfica, tenho um avião para Milão à minha espera, espero que espere, da última vez não esperou.
sexta-feira, março 19, 2004
Y'a une fille qu'habite chez moi
Há coisas boas em todas as culturas e até estes baguetes têm algumas, sou obrigado a reconhecer. Como sou uma alma gentil que gosta de partilhar, fica aqui a minha última descoberta, o Bénabar, a voz de uma geração: a do parisiense de trinta e poucos que anda de blazer, jeans coçados, sapatos afilados e cabelo look out-of-bed, mora num deux-pièces minúsculo mas caríssimo com vigas de madeira no centro de Paris e engata nos cafés e galerias de arte (ou seja, quase todos os meus vizinhos). Deixo a letra, façam favor de imaginar a música: melodias banais com arranjos a tresandar a Paris, fanfarra funk e acordeão musette, inspirações circenses e Tom Waits nos anos 80. Aqui está a minha versão-à-pressão:
Vários indícios despertaram a minha atenção
Abro os olhos
Vou fazer uma revista pra dar descanso à alma
Perco a calma
Há pormenores que não enganam
Os lençóis, edredons e a fronha da almofada
já não estão desirmanados
Ao lado dos meus trapos emaranhados
Há roupa dobrada e passada
Há pormenores que não enganam
Acho que está uma gaja a morar cá em casa!
Duas escovas de dentes na casa de banho
Sabonete sem sabão e secador de cabelo
(Meu não é de certeza)
Pequenas bolas bizarras
Para perfumar a banheira
é um verdadeiro pesadelo
Alguém massacrou todas as minhas amigas baratas!
Na cozinha sacos de chá
De verbena de camomila
Uma mensagem no gravador de uma mãe
Que não é a minha
A falar mal da minha família!
Há pormenores que não enganam
Alguém lavou a loiça às escondidas
Que é feito dos meus velhos hábitos, arrumar a casa de três em três meses?
Abro o frigorífico, horror, é a loucura!
Está cheio de legumes!
Até há fruta!
Há pormenores que não enganam
Acho que está uma gaja a morar cá em casa!
Onde estão os meus amigos que sornavam à frente da TV?
As caixas de pizza, os pacotes de batata frita esventrados
As beatas esmagadas nos pratos
A minha colecção de Playboys? posta de lado.
Na mesinha de cabeceira já não há camisas, só aspirina
Tenho uma gaja cá em casa
Também há velas contra o odor da nicotina
Tenho uma gaja cá em casa!
Há pormenores que não enganam
Há uma cortina a sério em vez de um lençol pregado na janela
E o qué isto meu Deus, uma planta verde!
O aspirador ainda está quente
é demais, vou apresentar queixa!
Vou levá-lo ao laboratório
Pra tirarem as impressões digitais
Dir-se-ia que já não sou solteiro
A culpada já não me escapa
Está à minha frente, a rede aperta-se
Agarrada ao telefone, sentada de pernas cruzadas
Num bonito vestido às flores
Uma menina diz-me "Deixa-te de mariquices
Pago tanto de renda como tu!"
Version originale: Tenho consciência plena que a turba ígnara que frequenta este blog mal consegue ler Português, quanto mais estrangeiro, mas na eventualidade remota de aparecer praí um iluminado, aí está a versão original, que rima e tudo.
Plusieurs indices m'ont mis la puce à l'oreille
J'ouvre l'oeil
J'vais faire une enquète pour en avoir le coeur net
Ca m'inquiète
Y'a des détails qui trompent pas
Les draps la couette et la taie d'oreiller
Sont plus dépareillés
A coté de mes fringues en boule
Y'a des vêtements pliés et repassés
Y'a des détails qui trompent pas
J'crois qu'y a une fille qu'habite chez moi!
Deux brosses à dent dans la salle de bain
Du savon sans savon et le sèche-cheveux
C'est certainement pas le mien
Des petites boules bizarres
Pour parfumer la baignoire
C'est un vrai cauchemar
Quelqu'un a massacré tous mes amis cafards!
Dans la cuisine des sachets de thé
De verveine de camomille
Un message sur le répondeur d'une mère
Qu'est pas la mienne
V'là qu'elle s'en prend à ma famille!
Y'a des détails qui trompent pas
Quelqu'un en douce a fait la vaiselle
Où sont mes habitudes mon ménage trimestriel?
J'ouvre le frigo horreur c'est d'la folie!
Y'a plein de légumes!
Y'a même des fruits!
Y'a des détails qui trompent pas
j'crois qu'ya une fille qu'habite chez moi!
Où sont mes potes qui glandaient devant la télé
Les boîtes de pizza les paquets de chips éventrés
Les mégots de cigarettes écrasés dans les assiettes
Ma collection de new look? aux oubliettes!
Sur la table de nuit y'a plus de capotes mais de l'aspirine
Y'a une fille qu'habite chez moi
Y'a aussi des bougies contre l'odeur de la nicotine
Y'a une fille qu'habite chez moi!
Y'a des détails qui trompent pas
Y'a un vrai rideau y'a plus un drap cloué sur la fenêtre!
Qu'est ce que c'est que ça mon Dieu c'est une plante verte!
L'aspirateur est encore chaud
C'est trop je porte plainte!
Je vais l'emmener au labo
Pour vérifier les empreintes
On dirait que je suis plus célibataire
La coupable je la tiens
Elle est devant l'étau se resserre
Accrochée au téléphone assise en tailleur
Dans une jolie robe à fleur
Une fille me dit "arrête ton cinéma
Et le loyer je le paye autant que toi!"
Paroles et Musique: Bénabar 2001, "Bénabar"
Vários indícios despertaram a minha atenção
Abro os olhos
Vou fazer uma revista pra dar descanso à alma
Perco a calma
Há pormenores que não enganam
Os lençóis, edredons e a fronha da almofada
já não estão desirmanados
Ao lado dos meus trapos emaranhados
Há roupa dobrada e passada
Há pormenores que não enganam
Acho que está uma gaja a morar cá em casa!
Duas escovas de dentes na casa de banho
Sabonete sem sabão e secador de cabelo
(Meu não é de certeza)
Pequenas bolas bizarras
Para perfumar a banheira
é um verdadeiro pesadelo
Alguém massacrou todas as minhas amigas baratas!
Na cozinha sacos de chá
De verbena de camomila
Uma mensagem no gravador de uma mãe
Que não é a minha
A falar mal da minha família!
Há pormenores que não enganam
Alguém lavou a loiça às escondidas
Que é feito dos meus velhos hábitos, arrumar a casa de três em três meses?
Abro o frigorífico, horror, é a loucura!
Está cheio de legumes!
Até há fruta!
Há pormenores que não enganam
Acho que está uma gaja a morar cá em casa!
Onde estão os meus amigos que sornavam à frente da TV?
As caixas de pizza, os pacotes de batata frita esventrados
As beatas esmagadas nos pratos
A minha colecção de Playboys? posta de lado.
Na mesinha de cabeceira já não há camisas, só aspirina
Tenho uma gaja cá em casa
Também há velas contra o odor da nicotina
Tenho uma gaja cá em casa!
Há pormenores que não enganam
Há uma cortina a sério em vez de um lençol pregado na janela
E o qué isto meu Deus, uma planta verde!
O aspirador ainda está quente
é demais, vou apresentar queixa!
Vou levá-lo ao laboratório
Pra tirarem as impressões digitais
Dir-se-ia que já não sou solteiro
A culpada já não me escapa
Está à minha frente, a rede aperta-se
Agarrada ao telefone, sentada de pernas cruzadas
Num bonito vestido às flores
Uma menina diz-me "Deixa-te de mariquices
Pago tanto de renda como tu!"
Version originale: Tenho consciência plena que a turba ígnara que frequenta este blog mal consegue ler Português, quanto mais estrangeiro, mas na eventualidade remota de aparecer praí um iluminado, aí está a versão original, que rima e tudo.
Plusieurs indices m'ont mis la puce à l'oreille
J'ouvre l'oeil
J'vais faire une enquète pour en avoir le coeur net
Ca m'inquiète
Y'a des détails qui trompent pas
Les draps la couette et la taie d'oreiller
Sont plus dépareillés
A coté de mes fringues en boule
Y'a des vêtements pliés et repassés
Y'a des détails qui trompent pas
J'crois qu'y a une fille qu'habite chez moi!
Deux brosses à dent dans la salle de bain
Du savon sans savon et le sèche-cheveux
C'est certainement pas le mien
Des petites boules bizarres
Pour parfumer la baignoire
C'est un vrai cauchemar
Quelqu'un a massacré tous mes amis cafards!
Dans la cuisine des sachets de thé
De verveine de camomille
Un message sur le répondeur d'une mère
Qu'est pas la mienne
V'là qu'elle s'en prend à ma famille!
Y'a des détails qui trompent pas
Quelqu'un en douce a fait la vaiselle
Où sont mes habitudes mon ménage trimestriel?
J'ouvre le frigo horreur c'est d'la folie!
Y'a plein de légumes!
Y'a même des fruits!
Y'a des détails qui trompent pas
j'crois qu'ya une fille qu'habite chez moi!
Où sont mes potes qui glandaient devant la télé
Les boîtes de pizza les paquets de chips éventrés
Les mégots de cigarettes écrasés dans les assiettes
Ma collection de new look? aux oubliettes!
Sur la table de nuit y'a plus de capotes mais de l'aspirine
Y'a une fille qu'habite chez moi
Y'a aussi des bougies contre l'odeur de la nicotine
Y'a une fille qu'habite chez moi!
Y'a des détails qui trompent pas
Y'a un vrai rideau y'a plus un drap cloué sur la fenêtre!
Qu'est ce que c'est que ça mon Dieu c'est une plante verte!
L'aspirateur est encore chaud
C'est trop je porte plainte!
Je vais l'emmener au labo
Pour vérifier les empreintes
On dirait que je suis plus célibataire
La coupable je la tiens
Elle est devant l'étau se resserre
Accrochée au téléphone assise en tailleur
Dans une jolie robe à fleur
Une fille me dit "arrête ton cinéma
Et le loyer je le paye autant que toi!"
Paroles et Musique: Bénabar 2001, "Bénabar"
quinta-feira, março 18, 2004
Pastoral Taliban
A avaliar pela javardeira que assaltou as estações de metro parisienses esta semana, o estado de alerta anti-terrorista deve ter passado a vermelho outra vez. A primeira coisa a desaparecer são os caixotes de lixo.
A Palestina não é mais que um pretexto congeminado pelos marketers aiatolas para promover o recrutamento. O verdadeiro e nobre intuito dos grupos terroristas islâmicos é minar a assepsia desumana de certas cidades europeias, trazer um pouco do calor e alegria das ruas de Rabat ou Teerão.
Eles têm um sonho, e no seu sonho vêem rebanhos de ovelhas no RER ou no tube de Londres, disseminando caroços de azeitona no seu caminho matinal para as verdejantes pastagens da periferia; cabras, crianças, galinhas, camelos, em idílica comunhão com o Homem (com a Mulher não, em casa há muita loiça para lavar e roupa para passar); oh musas, que bela imagem! o cheirinho das almôndegas de borrego a fritar; o chá de menta ou maçã em copos partilhados por milhares de pessoas sem recurso a quaisquer detergentes ou desinfectantes — perigosos inimigos do ambiente, potencialmente cancerígenos — num espírito fraterno de comunhão de almas e micróbios salivares; os vendedores de ervas mágicas e terapêuticas, libertos da opressiva legislação europeia que interdita a venda de um fármaco só porque matou meia dúzia de ratos de laboratório.
Se tudo isto não passa de um sonho longínquo, ao menos uns papelinhos no chão já se vão vendo. Pessoalmente, sinto-me muito mais em casa.
A Palestina não é mais que um pretexto congeminado pelos marketers aiatolas para promover o recrutamento. O verdadeiro e nobre intuito dos grupos terroristas islâmicos é minar a assepsia desumana de certas cidades europeias, trazer um pouco do calor e alegria das ruas de Rabat ou Teerão.
Eles têm um sonho, e no seu sonho vêem rebanhos de ovelhas no RER ou no tube de Londres, disseminando caroços de azeitona no seu caminho matinal para as verdejantes pastagens da periferia; cabras, crianças, galinhas, camelos, em idílica comunhão com o Homem (com a Mulher não, em casa há muita loiça para lavar e roupa para passar); oh musas, que bela imagem! o cheirinho das almôndegas de borrego a fritar; o chá de menta ou maçã em copos partilhados por milhares de pessoas sem recurso a quaisquer detergentes ou desinfectantes — perigosos inimigos do ambiente, potencialmente cancerígenos — num espírito fraterno de comunhão de almas e micróbios salivares; os vendedores de ervas mágicas e terapêuticas, libertos da opressiva legislação europeia que interdita a venda de um fármaco só porque matou meia dúzia de ratos de laboratório.
Se tudo isto não passa de um sonho longínquo, ao menos uns papelinhos no chão já se vão vendo. Pessoalmente, sinto-me muito mais em casa.
terça-feira, março 16, 2004
Nota social
Hoje estão 19 graus em Paris! Por esta altura no ano passado, a discussão nacional era a chacina que o frio invernal tinha perpetrado entre os sem-abrigo (poucos meses antes da matança que o calor estival iria perpetrar entre os velhadas). Na rádio, um sem-abrigo com inclinações filosóficas tecia considerações sobre o expansão recente do fenómeno SDF (sans domicile fixe). Depois de uma aturada discussão do caso geral, o senhor quis partilhar a sua história pessoal. Anos de auto-análise e conversas com o cão e o candeeiro tinham-lhe permitido condensar os múltiplos factores que o levaram às ruas numa fonte fundamental: a estrutura de preços praticada pelos cafés parisienses.
Cito de memória: "Oh amigo, a culpa não é minha... eu chego ao bistrot cheio de sede, a Orangina custa quatro euros, a bejeca custa três... o que é que você fazia? Quando dei por mim era alcoólico, desempregado e batia na mulher".
Cito de memória: "Oh amigo, a culpa não é minha... eu chego ao bistrot cheio de sede, a Orangina custa quatro euros, a bejeca custa três... o que é que você fazia? Quando dei por mim era alcoólico, desempregado e batia na mulher".
terça-feira, março 09, 2004
A Nova Nova Atlântida
O último livro do Paul Auster, "Oracle Night", recorre a um artifício formal que não tem nada de especialmente inovador: um escritor escreve sobre um escritor que escreve sobre um editor que lê o romance de outro escritor. O velho truque das bonecas russas. É o género de coisa que o Auster gosta e sabe fazer, "c'est son truc", como dizem os baguetes. Ainda não li o livro por isso não me vou pôr a comentá-lo (eu sei, isso não é obstáculo para os críticos, mas eles são profissionais; há técnicas que não domino, ensinadas na Escola de Críticos, para falar do que não se sabe). Só li a sinopse, que contém um pormenor delicioso.
O protagonista de primeiro grau, clássico autor desinspirado, encontra numa papelaria chinesa em Brooklin um bloco-notas de propriedades mágicas, que lhe desbloqueia a torrente de ideias e fluência verbal. Dado o carácter esotérico do caderninho, a sua origem não podia deixar de ser tanto quanto possível misteriosa. Noutros tempos o caderninho teria vindo da Atlântida, do Jardim do Éden, do Templo de Salomão, no séc. XIV italiano viria da China, no séc. XV português do Reino de Preste João, no séc. XVI espanhol do Eldorado, no séc. XIX britânico das Nascentes do Nilo. No céptico séc. XXI americano, em que toda a Terra parece explorada e a mitologia do séc. XX de uma Comunidade Galáctica e homenzinhos verdes perdeu fôlego, começa a ser difícil arranjar locais míticos com carisma suficiente para fazer sonhar.
"No pasa nada": se não há, inventa-se. O Auster teve de ir ao fundo da gaveta buscar um local com uma imagem suficientemente indistinta e evasiva no imaginário americano, que lhe proporcionasse matéria bruta para criar o seu próprio mito. Um nome que evoca paragens remotas, culturas perdidas, que soa algo familiar mas é convenientemente despegado de quaisquer referências concretas. Um nome que dificilmente pode ser encontrado nas etiquetas dos produtos, que não é mencionado na TV, nos jornais, um nome que não está manchado com a banalidade do quotidiano. O caderninho mágico de Auster vem de Portugal.
O protagonista de primeiro grau, clássico autor desinspirado, encontra numa papelaria chinesa em Brooklin um bloco-notas de propriedades mágicas, que lhe desbloqueia a torrente de ideias e fluência verbal. Dado o carácter esotérico do caderninho, a sua origem não podia deixar de ser tanto quanto possível misteriosa. Noutros tempos o caderninho teria vindo da Atlântida, do Jardim do Éden, do Templo de Salomão, no séc. XIV italiano viria da China, no séc. XV português do Reino de Preste João, no séc. XVI espanhol do Eldorado, no séc. XIX britânico das Nascentes do Nilo. No céptico séc. XXI americano, em que toda a Terra parece explorada e a mitologia do séc. XX de uma Comunidade Galáctica e homenzinhos verdes perdeu fôlego, começa a ser difícil arranjar locais míticos com carisma suficiente para fazer sonhar.
"No pasa nada": se não há, inventa-se. O Auster teve de ir ao fundo da gaveta buscar um local com uma imagem suficientemente indistinta e evasiva no imaginário americano, que lhe proporcionasse matéria bruta para criar o seu próprio mito. Um nome que evoca paragens remotas, culturas perdidas, que soa algo familiar mas é convenientemente despegado de quaisquer referências concretas. Um nome que dificilmente pode ser encontrado nas etiquetas dos produtos, que não é mencionado na TV, nos jornais, um nome que não está manchado com a banalidade do quotidiano. O caderninho mágico de Auster vem de Portugal.
segunda-feira, março 01, 2004
“Du endegs nach am Gronn!”
Milhões de turistas galgam as estradas europeias todos os anos. Vão a todo o lado. Alguns, mais intrépidos, conseguem mesmo chegar a Portugal, não desanimando com as várias centenas de quilómetros de deserto, touros Osborne e bocadillos de pão seco que têm garantido o isolamento pátrio das más influências da Europa. Muitos destes viajantes tendem a ignorar, curiosamente, o país mais rico do Mundo, mesmo passando a poucos quilómetros das suas fronteiras. Vão à Bélgica, França, Holanda, Alemanha e o tesouro escondido da Europa que é o Luxemburgo passa-lhes desapercebido. Agora percebo porquê.
No fim de semana, a Joana convenceu-me a preencher aquilo que na altura parecia uma lacuna cultural. Metemo-nos cinco na minha banhola (a viatura, portanto) e lá fomos a caminho do Luxemburgo. Quatro horas de viagem depois estávamos na capital do grão-ducado. Depois de comermos um pizza tipicamente luxemburguesa num Pizza Hut em que 90% da força de trabalho tinha nascido em Trás-os-Montes (ouvia-se a espaços um sonoro "f*da-se, c*ralho" da cozinha) dirigimo-nos com entusiasmo ao posto de informações turísticas. Aqui, uma senhora feia e pouco simpática parecia embaraçada para explicar o que haveria para ver naquela terra; acabou por passar-nos para a mão um mapa da cidade com um circuito pedestre. Os pontos de interesse eram: a estátua dourada de uma menina no cimo de uma coluna, um palácio grão-ducal copy-paste da Eurodisney (ou vice-versa, já havia Eurodisney no séc. XVI?) e uma catedral dos anos 60 desenhada num estilo misto nórdico-bizantino de gosto duvidoso. Quase não havia pessoas na rua; as que se mostravam eram geralmente feias, desleixadas e davam nitidamente a sensação de que prefeririam estar noutro lugar. Ser Luxemburguês é como ser Contabilista: ninguém gosta realmente de o ser, mas é prático, confortável e tem de calhar a alguém (este é o estereótipo superficial e irreflectido da semana, profitai).
Quando já tínhamos perdido esperança, fomos parar ao Grund, seduzidos pela fotografia numa brochura (esta, página 10) que a Charlotte roubou nas Informações. O Grund é um bairro medieval encravado num vale pitoresco; apesar de completamente deserto, era bonitinho. Diria antes... fotogénico. Tal como a Bárbara Guimarães, tinha melhor aspecto nas fotografias que ao vivo. Assustador era o título do artigo: "Um dia, acabarás no Grund!".
Cruz credo, Deus nos proteja!
No fim de semana, a Joana convenceu-me a preencher aquilo que na altura parecia uma lacuna cultural. Metemo-nos cinco na minha banhola (a viatura, portanto) e lá fomos a caminho do Luxemburgo. Quatro horas de viagem depois estávamos na capital do grão-ducado. Depois de comermos um pizza tipicamente luxemburguesa num Pizza Hut em que 90% da força de trabalho tinha nascido em Trás-os-Montes (ouvia-se a espaços um sonoro "f*da-se, c*ralho" da cozinha) dirigimo-nos com entusiasmo ao posto de informações turísticas. Aqui, uma senhora feia e pouco simpática parecia embaraçada para explicar o que haveria para ver naquela terra; acabou por passar-nos para a mão um mapa da cidade com um circuito pedestre. Os pontos de interesse eram: a estátua dourada de uma menina no cimo de uma coluna, um palácio grão-ducal copy-paste da Eurodisney (ou vice-versa, já havia Eurodisney no séc. XVI?) e uma catedral dos anos 60 desenhada num estilo misto nórdico-bizantino de gosto duvidoso. Quase não havia pessoas na rua; as que se mostravam eram geralmente feias, desleixadas e davam nitidamente a sensação de que prefeririam estar noutro lugar. Ser Luxemburguês é como ser Contabilista: ninguém gosta realmente de o ser, mas é prático, confortável e tem de calhar a alguém (este é o estereótipo superficial e irreflectido da semana, profitai).
Quando já tínhamos perdido esperança, fomos parar ao Grund, seduzidos pela fotografia numa brochura (esta, página 10) que a Charlotte roubou nas Informações. O Grund é um bairro medieval encravado num vale pitoresco; apesar de completamente deserto, era bonitinho. Diria antes... fotogénico. Tal como a Bárbara Guimarães, tinha melhor aspecto nas fotografias que ao vivo. Assustador era o título do artigo: "Um dia, acabarás no Grund!".
Cruz credo, Deus nos proteja!
sábado, fevereiro 28, 2004
Workaholic
Olá, o meu nome é Rod da Baguete e sou um workaholic. Os primeiros sinais começaram a tornar-se visíveis com uma redução acentuada da percentagem de tempo dedicado às actividades realmente importantes do escritório moderno: blogues, messenger, concursos de lançamento ao cesto de papéis, ataques verbais ao chefe e ao Governo (que nunca se traduzem em acções práticas) ao pé da máquina do café, manufactura de bonequinhos com clipes e "post-it"s. O almoço de hora e meia regado a tinto de Bordéus viu-se reduzido a vinte minutos de sandocha. Amigos escreveram-me preocupados com a falta de postas na baguete, mas embateram num muro de silêncio porque não respondo a mails pessoais há um mês.
Ontem à noite acordei finalmente para a realidade. Depois de catorze horas de trabalho, olhei em volta e percebi que era a única pessoa no escritório. Sendo onze da noite, resolvi vir embora antes que acabasse o stock de cachaça da Favela Chic (não que alguma vez tenha acontecido, mas ainda assim não deixo de ter pesadelos com isso). Ao chegar à saída do prédio, estranhei a falta de luz no gabinete do segurança. Mais estranhei quando a porta de saída não abria. Se alguma vez trabalhardes no país das 35 horas, meus amigos, lembrai-vos que a partir das dez, ou saístes ou estais condenado a dormir no escritório. O que vale é que eu gosto à brava destas coisas: lá descobri uma saída de emergência nas traseiras; como medida de segurança, estava bloqueada por três caixas de cartão e atada com um cordel, o que decerto afastará os mais astutos gatunos (por momentos senti-me de volta a Portugal). Demorei uns três minutos a romper o cordel com a chave de casa e recuperei a liberdade. Vou agora fazer uma chamada anónima para lá a avisar que têm a entrada do prédio escancarada.
Este problema enquadra-se numa crise de identidade mais vasta. Não é como um cão que eu trabalho (nunca percebi essa expressão), é como um emigrante. Deixei de ser um estagiário ao serviço dos Estado português, uma testa de ponte da Nação infiltrada no terreno inimigo; desde que fui contratado sou um Verdadeiro Emigrante. É certo que ainda não atingi o apuramento estético da classe: não me sinto ainda realmente à vontade com as correntes de ouro e a medalhinha de Fátima que rebrilham por entre a pilosidade exposta do peito raçudo de tuga. Sinto todavia que estou no bom caminho, dou por mim frequentemente a considerar a aquisição de um fato-treino para os paseios de domingo. Nestas condições como é que posso guardar a distância necessária para espalhar com à-vontade as minhas invectivas parciais e corrosivas sobre as especificidades culturais dos emigras e dos baguetes? Debruçando-me cuidadosamente sobre o assunto, ao ponto de quase perder o equilíbrio, concluí que terei de recorrer a doses cavalares de hipocrisia e duplicidade, dons de que a Natureza me dotou, heurosamente, com prodigalidade.
Ontem à noite acordei finalmente para a realidade. Depois de catorze horas de trabalho, olhei em volta e percebi que era a única pessoa no escritório. Sendo onze da noite, resolvi vir embora antes que acabasse o stock de cachaça da Favela Chic (não que alguma vez tenha acontecido, mas ainda assim não deixo de ter pesadelos com isso). Ao chegar à saída do prédio, estranhei a falta de luz no gabinete do segurança. Mais estranhei quando a porta de saída não abria. Se alguma vez trabalhardes no país das 35 horas, meus amigos, lembrai-vos que a partir das dez, ou saístes ou estais condenado a dormir no escritório. O que vale é que eu gosto à brava destas coisas: lá descobri uma saída de emergência nas traseiras; como medida de segurança, estava bloqueada por três caixas de cartão e atada com um cordel, o que decerto afastará os mais astutos gatunos (por momentos senti-me de volta a Portugal). Demorei uns três minutos a romper o cordel com a chave de casa e recuperei a liberdade. Vou agora fazer uma chamada anónima para lá a avisar que têm a entrada do prédio escancarada.
Este problema enquadra-se numa crise de identidade mais vasta. Não é como um cão que eu trabalho (nunca percebi essa expressão), é como um emigrante. Deixei de ser um estagiário ao serviço dos Estado português, uma testa de ponte da Nação infiltrada no terreno inimigo; desde que fui contratado sou um Verdadeiro Emigrante. É certo que ainda não atingi o apuramento estético da classe: não me sinto ainda realmente à vontade com as correntes de ouro e a medalhinha de Fátima que rebrilham por entre a pilosidade exposta do peito raçudo de tuga. Sinto todavia que estou no bom caminho, dou por mim frequentemente a considerar a aquisição de um fato-treino para os paseios de domingo. Nestas condições como é que posso guardar a distância necessária para espalhar com à-vontade as minhas invectivas parciais e corrosivas sobre as especificidades culturais dos emigras e dos baguetes? Debruçando-me cuidadosamente sobre o assunto, ao ponto de quase perder o equilíbrio, concluí que terei de recorrer a doses cavalares de hipocrisia e duplicidade, dons de que a Natureza me dotou, heurosamente, com prodigalidade.
segunda-feira, fevereiro 16, 2004
Shinozuka-san
Esta manhã, à espera da luz verde num semáforo da Concorde, imobilizado no alinhamento perfeito da recta que ligava a Madeleine e o obelisco de Luxor a uma manada de japongas fotografómanos (pleonasmo), em plena linha de tiro entre o caçador e a presa, comecei a fazer contas de cabeça. Depois de um ano a viver no centro de Paris, estimo que haja pelo menos desassete vezes mais fotografias minhas em casas de estranhos no Japão do que em casa da minha família. A minha modesta contribuição para a economia francesa não tem nada a ver com trabalho, a minha parte faço-a cuidando sempre de transportar a baguete debaixo do sovaco, de forma a satisfazer as expectativas dos turistas que sustentam esta cidade.
[De volta a Yokohama, numa casa de cartão sem mesas onde anda tudo de roupão, meias e chinelo, a família Shinozuka senta-se no chão à volta de chá verde, peixe cru, arroz-argamassa e quinze quilos de fotografias do fim-de-semana do patriarca em Paris]
Senhor Shinozuka: Aaaqui Toreiferu, muuuito gurande.
Senhora Shinozuka: Uoooóóóó!
Senhor Shinozuka: Aaaqui loja de maras Iruizo Vuitton nos Xamupêrisê, muuuito fino.
Senhora Shinozuka: Uoooóóóó!
Senhor Shinozuka: Aaaaqui furancêsu típico com baguete-san debaixo do sovaco, muuuuuito feio.
Senhora Shinozuka: Uoooóóóó!
[De volta a Yokohama, numa casa de cartão sem mesas onde anda tudo de roupão, meias e chinelo, a família Shinozuka senta-se no chão à volta de chá verde, peixe cru, arroz-argamassa e quinze quilos de fotografias do fim-de-semana do patriarca em Paris]
Senhor Shinozuka: Aaaqui Toreiferu, muuuito gurande.
Senhora Shinozuka: Uoooóóóó!
Senhor Shinozuka: Aaaqui loja de maras Iruizo Vuitton nos Xamupêrisê, muuuito fino.
Senhora Shinozuka: Uoooóóóó!
Senhor Shinozuka: Aaaaqui furancêsu típico com baguete-san debaixo do sovaco, muuuuuito feio.
Senhora Shinozuka: Uoooóóóó!
segunda-feira, janeiro 26, 2004
A Matrícula Iogurte
Este fim de semana passei-o a mudar móveis, excelente programa para os dois únicos dia de sol do Inverno parisiense, que ainda por cima coincidiam com os festejos do ano novo chinês, os maiores de sempre graças ao ano da China em França. Por isso é que a Torre Eiffel está toda vermelha, transformando a cidade numa gigantesca casa de putas. Nunca esteve tão imponente, atentai:
Foi um dia bem passado: montámos, desmontámos, descemos 4 andares com um sofá às costas, estivemos 3 horas no trânsito para chegar à aldeia típica para reformados ricos onde está desterrada a minha senhoria , perdemo-nos, comemos mal e tão caro como em Paris, descobrimos por acaso uma reserva africana e uma jóia da arte gótica (que pudemos visitar apesar de ser de noite e estar tudo vazio, uma vez que o padre estava a fazer horas extraordinárias na sacristia, ensinando os tons salmódicos a algum menino de coro). Pelo meio fomos interpelados pela polícia, ou melhor, pela gendarmerie.
Tenho sempre medo de ser parado pela bófia quando vou a conduzir. Apesar de ser um autêntico "cool driver" — fugindo da bebida como o diabo da cruz sempre que as chaves do Ferrari me tilintam no bolso do casaco Armani — a verdade é que o meu fígado foi de tal forma massacrado ao longo dos anos que, não lhe restando forças para a luta titânica de metabolizar álcool aos baldes, decidiu mudar de ramo: passou da reciclagem à produção, de ETAR a alambique. O sofrido órgão garante assim um nível residual constante de etanol na circulação sanguínea: mais obnubilação constante dos sentidos, mais alegria no dia de trabalho, mais adrenalina no contacto com os agentes da autoridade, cujos hediondos bafómetros são cegos à minha situação clínica, tomando-a por imprudência criminosa.
Quando o gendarme se aproximou da minha janela, os dispositivos automáticos do meu cérebro só me ordenavam: "faz-te sóbrio, faz-te sóbrio". Ignorados os factos de serem quatro e meia da tarde e não ter tocado em álcool o dia todo, ter uma pessoa enfiada no porta-bagagens (viva, valha-nos isso), ter o carro apinhado reduzindo a visibilidade à de um batiscafo e estar estacionado em cima do passeio na praça de St-Germain-des-Près:
Senhor Bófia — [em francês] Bonjour monsieur, a sua placa de matrícula tem um problema.
Eu — [de mim para mim, em português] Aha! estás a ver se me apanhas! estes gajos já descobriram que toda a gente consegue fazer o 4 com os copos e estão a adoptar novas tácticas, jogo psicológico! [em francês] Desculpa, não entende, carro portuguesa. É isso problema [em português, entre dentes, para o lado] Maria Rita, saca do mapa e finge que estamos perdidos, resulta sempre.
Senhor Bófia — [não foi isto que ele disse, mas pensou, em francês, sobre o fundo sonoro da Marselhesa] Sei muito bem que é portuguesa! Tem um P e umas estrelinhas e a Polónia ainda não entrou para a UE. Por quem me toma, por algum ígnaro barrigudo de bigode devorador de minis da GNR? Sou um gendarme, bófia baguete! [isto agora a seguir ele disse mesmo, em francês, sem banda sonora] Venha ver à retaguarda, se faz favor.
[dirigimo-nos à retaguarda, ele em francês, eu em português] Está a ver isto! [aponta para um 02/01 em fundo amarelo do lado direito da matrícula, não existente nas placas francesas]
Eu — Janeiro de 2002...
Senhor Bófia — [satisfeito com a sua própria argúcia] Exacto!!
Eu — E então?
Senhor Bófia — E então!!????
Eu — ?...
Senhor Bófia — [exasperado] Oh meu amigo, não vê que a sua matrícula já passou o prazo há dois anos! Olhe que isto em França não é a bandalheira que é na sua terra!
Foi um dia bem passado: montámos, desmontámos, descemos 4 andares com um sofá às costas, estivemos 3 horas no trânsito para chegar à aldeia típica para reformados ricos onde está desterrada a minha senhoria , perdemo-nos, comemos mal e tão caro como em Paris, descobrimos por acaso uma reserva africana e uma jóia da arte gótica (que pudemos visitar apesar de ser de noite e estar tudo vazio, uma vez que o padre estava a fazer horas extraordinárias na sacristia, ensinando os tons salmódicos a algum menino de coro). Pelo meio fomos interpelados pela polícia, ou melhor, pela gendarmerie.
Tenho sempre medo de ser parado pela bófia quando vou a conduzir. Apesar de ser um autêntico "cool driver" — fugindo da bebida como o diabo da cruz sempre que as chaves do Ferrari me tilintam no bolso do casaco Armani — a verdade é que o meu fígado foi de tal forma massacrado ao longo dos anos que, não lhe restando forças para a luta titânica de metabolizar álcool aos baldes, decidiu mudar de ramo: passou da reciclagem à produção, de ETAR a alambique. O sofrido órgão garante assim um nível residual constante de etanol na circulação sanguínea: mais obnubilação constante dos sentidos, mais alegria no dia de trabalho, mais adrenalina no contacto com os agentes da autoridade, cujos hediondos bafómetros são cegos à minha situação clínica, tomando-a por imprudência criminosa.
Quando o gendarme se aproximou da minha janela, os dispositivos automáticos do meu cérebro só me ordenavam: "faz-te sóbrio, faz-te sóbrio". Ignorados os factos de serem quatro e meia da tarde e não ter tocado em álcool o dia todo, ter uma pessoa enfiada no porta-bagagens (viva, valha-nos isso), ter o carro apinhado reduzindo a visibilidade à de um batiscafo e estar estacionado em cima do passeio na praça de St-Germain-des-Près:
Senhor Bófia — [em francês] Bonjour monsieur, a sua placa de matrícula tem um problema.
Eu — [de mim para mim, em português] Aha! estás a ver se me apanhas! estes gajos já descobriram que toda a gente consegue fazer o 4 com os copos e estão a adoptar novas tácticas, jogo psicológico! [em francês] Desculpa, não entende, carro portuguesa. É isso problema [em português, entre dentes, para o lado] Maria Rita, saca do mapa e finge que estamos perdidos, resulta sempre.
Senhor Bófia — [não foi isto que ele disse, mas pensou, em francês, sobre o fundo sonoro da Marselhesa] Sei muito bem que é portuguesa! Tem um P e umas estrelinhas e a Polónia ainda não entrou para a UE. Por quem me toma, por algum ígnaro barrigudo de bigode devorador de minis da GNR? Sou um gendarme, bófia baguete! [isto agora a seguir ele disse mesmo, em francês, sem banda sonora] Venha ver à retaguarda, se faz favor.
[dirigimo-nos à retaguarda, ele em francês, eu em português] Está a ver isto! [aponta para um 02/01 em fundo amarelo do lado direito da matrícula, não existente nas placas francesas]
Eu — Janeiro de 2002...
Senhor Bófia — [satisfeito com a sua própria argúcia] Exacto!!
Eu — E então?
Senhor Bófia — E então!!????
Eu — ?...
Senhor Bófia — [exasperado] Oh meu amigo, não vê que a sua matrícula já passou o prazo há dois anos! Olhe que isto em França não é a bandalheira que é na sua terra!
segunda-feira, janeiro 19, 2004
O código do assento
A complexa hierarquia de poderes nas empresas francesas é subtilmente definida por códigos tácitos. Como tudo em França, um sistema que passa no papel como simples, sólido, justo — fundado em dois séculos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade — é assim discretamente contornado para dar espaço a uma teia de discriminação, corrupção e privilégios tão suja como a de qualquer velho país europeu — mas dissimulada com muito mais arte. Consiste nisso o desígnio do baguete: por mais podre que esteja o âmago, o importante é que a superfície esteja sempre imaculada, perfumada e que coma com os talheres certos.
De volta ao local de trabalho (sim, eu trabalho) após umas férias prolongadas, tive uma sensação de estranheza. Não tinha mudado de posto, o escritório parecia inalterado, até os papéis sobre a secretária estavam exactamente na posição em que os havia deixado um mês atrás, ao milímetro — o que de resto diz muito sobre a qualidade dos serviços de limpeza nesta espeluca. A fonte subliminar daquela sensação teimava em furtar-se à minha percepção consciente, mas eu não conseguia de modo nenhum alhear-me e dar seguimento à minha actividade laboral, a qual não vou aqui descrever mas que, posso assegurar, é vital para o futuro da Humanidade. Numa derradeira e desesperada tentativa, decidi analisar os padrões de manchas e rachas do tecto, à procura de evoluções recentes que pudessem ter despoletado os alarmes no meu subconsciente. Levantei os olhos, recostei-me, pousei os cotovelos nos braços da cadeira e ao fim de poucos segundos iluminou-se-me o espírito. Nas minhas regulares sessões de inspecção dos sinais de humidade no tecto do escritório, o ritual era outro: levantava os olhos, recostava-me e cruzava os braços. Debrucei-me um pouco sobre o que me poderia ter levado a adquirir esse hábito, sabendo que os braços cruzados são conotados na sociedade ocidental com apatia, resignação e ócio, qualidades geralmente repudiadas e penalizadas no ambiente empresarial, ainda que cultivadas com amor na função pública portuguesa. Era simples: cruzava os braços porque até essa altura nunca havia tido onde apoiar os cotovelos... Tinham crescido braços na minha cadeira! Já não estava numa vulgar chése francesa mas sim numa fotâlhe, se bem que não chegasse propriamente a ser uma poltrona.
Vim a saber junto de informadores locais que um dos tais códigos tácitos é o "código do assento". Desde a cadeira de pau à poltrona de couro com vibromassagem, o suporte do fofo de cada empregado classifica-se de acordo com uma miríade de graduações que estabelece as relações de respeito no escritório. Assim, trabalho mais, tenho mais responsabilidades, ganho o mesmo e até estou mais desconfortável, mas haviam de ver os olhares de ódio e inveja que me lançam cada vez que gabo junto da escumalha estagiária o sistema pneumático da minha cadeira de braços.
De volta ao local de trabalho (sim, eu trabalho) após umas férias prolongadas, tive uma sensação de estranheza. Não tinha mudado de posto, o escritório parecia inalterado, até os papéis sobre a secretária estavam exactamente na posição em que os havia deixado um mês atrás, ao milímetro — o que de resto diz muito sobre a qualidade dos serviços de limpeza nesta espeluca. A fonte subliminar daquela sensação teimava em furtar-se à minha percepção consciente, mas eu não conseguia de modo nenhum alhear-me e dar seguimento à minha actividade laboral, a qual não vou aqui descrever mas que, posso assegurar, é vital para o futuro da Humanidade. Numa derradeira e desesperada tentativa, decidi analisar os padrões de manchas e rachas do tecto, à procura de evoluções recentes que pudessem ter despoletado os alarmes no meu subconsciente. Levantei os olhos, recostei-me, pousei os cotovelos nos braços da cadeira e ao fim de poucos segundos iluminou-se-me o espírito. Nas minhas regulares sessões de inspecção dos sinais de humidade no tecto do escritório, o ritual era outro: levantava os olhos, recostava-me e cruzava os braços. Debrucei-me um pouco sobre o que me poderia ter levado a adquirir esse hábito, sabendo que os braços cruzados são conotados na sociedade ocidental com apatia, resignação e ócio, qualidades geralmente repudiadas e penalizadas no ambiente empresarial, ainda que cultivadas com amor na função pública portuguesa. Era simples: cruzava os braços porque até essa altura nunca havia tido onde apoiar os cotovelos... Tinham crescido braços na minha cadeira! Já não estava numa vulgar chése francesa mas sim numa fotâlhe, se bem que não chegasse propriamente a ser uma poltrona.
Vim a saber junto de informadores locais que um dos tais códigos tácitos é o "código do assento". Desde a cadeira de pau à poltrona de couro com vibromassagem, o suporte do fofo de cada empregado classifica-se de acordo com uma miríade de graduações que estabelece as relações de respeito no escritório. Assim, trabalho mais, tenho mais responsabilidades, ganho o mesmo e até estou mais desconfortável, mas haviam de ver os olhares de ódio e inveja que me lançam cada vez que gabo junto da escumalha estagiária o sistema pneumático da minha cadeira de braços.
terça-feira, janeiro 13, 2004
Redacção: As minhas férias
Para as férias de Natal, fui ao Portugal, que é a terra da minha mãe. Não me lembro muito bem das férias porque me embebedei todas as noites. Lá nos países subdesenvolvidos do Sul é assim. Foi muito drôle, porque já não via os outros meninos portugueses depois onze meses. Houve uns que eu nem mesmo tive pá tempo de ver porque estavam a prestar declarações ao diápe. Vi o telejornal muitas vezes porque o meu pai diz que é importante estar informado, mas não percebo porque é que é preciso vê-lo várias vezes, eles continuam a repetir todos os dias o mesmo episódio que estava a dar quando me fui embora. Mais valia fazerem só um para o ano todo, podia ser o Herman a apresentar no réveillon.
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"Ora as notícias para 2003 são:
NACIONAL
- pedofilia na Casa Pia;
- incêndios no Verão porque faz muito calor, muito vento e chove pouco;
- o caso Moderna ainda não está resolvido;
- 47 [crianças/velhos] [doentes/deficientes] vivem em casas degradadas e recebem pensões miseráveis;
- 16 criancinhas tiveram meningite, causando o encerramento temporário de 16 [escolas primárias/jardins de infância] e a inquietação de 16 associações de pais;
- 359 velhotes foram enganados por burlões do euro (uma descida drástica face aos 872 do ano passado);
- continuam a morrer 3 pessoas por dia nas estradas portuguesas devido ao álcool e excesso de velocidade, mas a verdadeira razão é a falta de civismo dos condutores, a falta de sinalização e mau estado das estradas;
- o comércio no [Natal/Páscoa/Dia dos Namorados/Dia da Mãe/Dia de Reis] esteve pior que o ano passado;
- Portugal apareceu na cauda da Europa em 38 estatísticas sortidas;
- [bolo-rei/folar/pastéis de tentúgal/pastéis de belém] continuam a ter a mesma receita tradicional que é apresentada todos os anos, salvo o pequeno segredo familiar passado de geração em geração que todas as casas guardam cuidadosamente, o que não impede que o sabor seja o mesmo em todo o lado;
- A GNR apreendeu 1200 kg de haxixe, 200 kg de heroína, 150 kg de cocaína, 137 caçadeiras de canos serrados, 27 pistolas, 67000 euros em notas falsas, 457 telemóveis e 3 vibradores.
INTERNACIONAL
- há guerra no Iraque e os americanos têm medo dos terroristas;
- 423 fait-divers perfeitamente anódinos ocorreram nos Estados Unidos (o que lhes dá legitimidade), entre perseguições de carro à velocidade vertiginosa de 130 km/h, animais que fazem surf ou andam de mota, gente que é muito gorda, gajos que andaram aos tiros, meia dúzia de pessoas que morreram com [tornados/tremores de terra/enxorradas];
- 1372 substâncias foram proibidas pela FDA mas continuam a ser legais na Europa, motivando 1372 vezes o alarme dos media e das populações;
- o Pai Natal continua a morar na Lapónia e a receber milhares de cartas de crianças de todo o Mundo.
Agora toca a contar as passas que vem aí 2004!!!"
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De volta a Lisboa, constatei que, tirando os dois estádios novos na segunda circular, estava tudo igual ao que eu deixei só que um bocado pior e mais estragado. Fez-me lembrar a Eurodisney que, à parte o Indiana Jones e a Space Mountain, está na mesma há dez anos, mas cada vez mais velha. Fiquei contente porque o estádio do Sporting não é assim tão feio (admito que estava a contar com o pior) e o do Benfica é perfeitamente horrível. Comi muito bem e muito barato e também comi mal e barato e até comi mal e caro, quase me sentia no Quartier Latin. A noite do Bairro está muito melhor, a Kapital está toda estragada com aquela mariquice de sofás no andar de cima, o People é só putos, o BBC só cotas e o Lux estava às moscas mas passou uma música da Favela Chic, o ponto mais alto de toda a estadia. Quer dizer, o ponto mais alto de toda a estadia, literalmente, foi o terraço no topo da Torre Vasco da Gama, pico até aí inexplorado que atingi às três da manhã de dia 1. Depois de comer as doze passas no rés-do-chão, fui parar inexplicavelmente às escadas de incêndio e subi aquilo tudo com o João e o Pedro, dois cavalheiros que eu não conhecia de lado nenhum. Os meus camaradas, menos atléticos e mais embriagados, acabaram por ficar para trás e deixar-se apanhar pelos seguranças a escassos metros da meta. Estes, satisfeitos com as presas, ignoraram um terceiro aventureiro (cuja costela brasileira o havia dotado de um motor alimentado a álcool) que saltava degraus de três em três em direcção à Glória. Lá em cima a vista era sublime e o vento impiedoso, maximizando o carácter heróico da cena. Na descida tropecei num empregado de mesa que despejava o lixo, disse-me educadamente que eu não podia descer pelas escadas de segurança e fui obrigado a entrar no restaurante panorâmico onde decorria a festa VIP. Apavorado com a saloice do jet-set português dirigi-me com presteza para o elevador, desculpando-me com o pretexto ir lá abaixo espreitar o povo. Depois de ver o Benfica-Sporting, único jogo que vi este ano (e muito bem escolhido), voltei para a Fránça de avião. Como tinha mudado o vôo da Air Luxor para a Air France, não tenho peripécias para contar.
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"Ora as notícias para 2003 são:
NACIONAL
- pedofilia na Casa Pia;
- incêndios no Verão porque faz muito calor, muito vento e chove pouco;
- o caso Moderna ainda não está resolvido;
- 47 [crianças/velhos] [doentes/deficientes] vivem em casas degradadas e recebem pensões miseráveis;
- 16 criancinhas tiveram meningite, causando o encerramento temporário de 16 [escolas primárias/jardins de infância] e a inquietação de 16 associações de pais;
- 359 velhotes foram enganados por burlões do euro (uma descida drástica face aos 872 do ano passado);
- continuam a morrer 3 pessoas por dia nas estradas portuguesas devido ao álcool e excesso de velocidade, mas a verdadeira razão é a falta de civismo dos condutores, a falta de sinalização e mau estado das estradas;
- o comércio no [Natal/Páscoa/Dia dos Namorados/Dia da Mãe/Dia de Reis] esteve pior que o ano passado;
- Portugal apareceu na cauda da Europa em 38 estatísticas sortidas;
- [bolo-rei/folar/pastéis de tentúgal/pastéis de belém] continuam a ter a mesma receita tradicional que é apresentada todos os anos, salvo o pequeno segredo familiar passado de geração em geração que todas as casas guardam cuidadosamente, o que não impede que o sabor seja o mesmo em todo o lado;
- A GNR apreendeu 1200 kg de haxixe, 200 kg de heroína, 150 kg de cocaína, 137 caçadeiras de canos serrados, 27 pistolas, 67000 euros em notas falsas, 457 telemóveis e 3 vibradores.
INTERNACIONAL
- há guerra no Iraque e os americanos têm medo dos terroristas;
- 423 fait-divers perfeitamente anódinos ocorreram nos Estados Unidos (o que lhes dá legitimidade), entre perseguições de carro à velocidade vertiginosa de 130 km/h, animais que fazem surf ou andam de mota, gente que é muito gorda, gajos que andaram aos tiros, meia dúzia de pessoas que morreram com [tornados/tremores de terra/enxorradas];
- 1372 substâncias foram proibidas pela FDA mas continuam a ser legais na Europa, motivando 1372 vezes o alarme dos media e das populações;
- o Pai Natal continua a morar na Lapónia e a receber milhares de cartas de crianças de todo o Mundo.
Agora toca a contar as passas que vem aí 2004!!!"
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De volta a Lisboa, constatei que, tirando os dois estádios novos na segunda circular, estava tudo igual ao que eu deixei só que um bocado pior e mais estragado. Fez-me lembrar a Eurodisney que, à parte o Indiana Jones e a Space Mountain, está na mesma há dez anos, mas cada vez mais velha. Fiquei contente porque o estádio do Sporting não é assim tão feio (admito que estava a contar com o pior) e o do Benfica é perfeitamente horrível. Comi muito bem e muito barato e também comi mal e barato e até comi mal e caro, quase me sentia no Quartier Latin. A noite do Bairro está muito melhor, a Kapital está toda estragada com aquela mariquice de sofás no andar de cima, o People é só putos, o BBC só cotas e o Lux estava às moscas mas passou uma música da Favela Chic, o ponto mais alto de toda a estadia. Quer dizer, o ponto mais alto de toda a estadia, literalmente, foi o terraço no topo da Torre Vasco da Gama, pico até aí inexplorado que atingi às três da manhã de dia 1. Depois de comer as doze passas no rés-do-chão, fui parar inexplicavelmente às escadas de incêndio e subi aquilo tudo com o João e o Pedro, dois cavalheiros que eu não conhecia de lado nenhum. Os meus camaradas, menos atléticos e mais embriagados, acabaram por ficar para trás e deixar-se apanhar pelos seguranças a escassos metros da meta. Estes, satisfeitos com as presas, ignoraram um terceiro aventureiro (cuja costela brasileira o havia dotado de um motor alimentado a álcool) que saltava degraus de três em três em direcção à Glória. Lá em cima a vista era sublime e o vento impiedoso, maximizando o carácter heróico da cena. Na descida tropecei num empregado de mesa que despejava o lixo, disse-me educadamente que eu não podia descer pelas escadas de segurança e fui obrigado a entrar no restaurante panorâmico onde decorria a festa VIP. Apavorado com a saloice do jet-set português dirigi-me com presteza para o elevador, desculpando-me com o pretexto ir lá abaixo espreitar o povo. Depois de ver o Benfica-Sporting, único jogo que vi este ano (e muito bem escolhido), voltei para a Fránça de avião. Como tinha mudado o vôo da Air Luxor para a Air France, não tenho peripécias para contar.
quarta-feira, dezembro 17, 2003
O emigra reentra para as vacanças de Nouél
Na vida de qualquer bom emigra, retorna ciclicamente a altura do ano em que o rito se impõe à racionalidade e urge o regresso à pátria para comer rabanadas e inspeccionar as obras no chalet de inspiração suíça "Sonho da minha Mãe". Sucedem-se os almoços, lanches, jantaradas, saídas nocturnas, todas as actividades de uma cultura social construída à volta do prato e do copo. A vida cibernética afoga-se e deixa poucas saudades.
quarta-feira, dezembro 10, 2003
A Vida no Estaleiro
Fui ao teatro com uma francesa. A rapariga escolheu uma comédia ligeira de humor fácil para não exigir muito do meu grosseiro cérebro de português. É um erro comum: os nativos têm dificuldade em interiorizar que a linguagem de Jean Genet ou Molière é mais acessível a um estrangeiro que aprendeu pelos livros do que qualquer trocadilho vulgar. Fomos então ver a campeã das bilheteiras "La Vie de Chantier" — "A Vida de Canteiro", em português de Champigny — com Dany Boon, vedeta da comédia local que me pareceu uma versão baguete com bons modos do Lee Evans, tiques, orelhas e tudo.
Estava à espera de não perceber metade das piadas e não percebi mesmo, mas a peça acabou por revelar um conteúdo de profundo interesse sociológico. Como não podia deixar de ser, tendo em conta o tema da peça (respeitável família francesa cai numa espiral de caos e destruição quando tenta fazer obras em casa), há um português metido ao barulho: Pedro Pinto, pedreiro-canalizador de 50 anos, a caricatura do português que quase todo o parisiense tem na cabeça mas não tem a coragem de pôr na língua. Quero dizer, muitas vezes até tem.
Foi um deleite. Ora o Pedro Pinto era néscio, era preguiçoso, era ignorante, era ineficiente, tinha pobres maneiras, era peludo e cheirava mal. As suas únicas qualidades positivas era um carácter dócil (como os cães) e a honestidade, mas mesmo esta derivava de um intelecto débil que o incapacitava de manipular as situações em proveito próprio. A senhora da casa tem um colapso quando a filha, vítima de uma electrocução que lhe afecta seriamente o sistema nervoso central, se apaixona pelo "portos" (lê-se "pòrrtôz").
De alguma forma refrescante é o facto de a caricatura não ser baseada numa ignorância completa, como é costume entre os anglófonos; aqui o Português não falava espanhol nem dava beijinhos na boca de outros homens.
O actor que encarnava a personagem de Pedro Pinto dá pelo nome pouco luso de Zinedine Soualem, mas por aí eu não pego, o senhor fez muito bem o sotaque e tinha mais cara de tuga que eu.
Estava à espera de não perceber metade das piadas e não percebi mesmo, mas a peça acabou por revelar um conteúdo de profundo interesse sociológico. Como não podia deixar de ser, tendo em conta o tema da peça (respeitável família francesa cai numa espiral de caos e destruição quando tenta fazer obras em casa), há um português metido ao barulho: Pedro Pinto, pedreiro-canalizador de 50 anos, a caricatura do português que quase todo o parisiense tem na cabeça mas não tem a coragem de pôr na língua. Quero dizer, muitas vezes até tem.
Foi um deleite. Ora o Pedro Pinto era néscio, era preguiçoso, era ignorante, era ineficiente, tinha pobres maneiras, era peludo e cheirava mal. As suas únicas qualidades positivas era um carácter dócil (como os cães) e a honestidade, mas mesmo esta derivava de um intelecto débil que o incapacitava de manipular as situações em proveito próprio. A senhora da casa tem um colapso quando a filha, vítima de uma electrocução que lhe afecta seriamente o sistema nervoso central, se apaixona pelo "portos" (lê-se "pòrrtôz").
De alguma forma refrescante é o facto de a caricatura não ser baseada numa ignorância completa, como é costume entre os anglófonos; aqui o Português não falava espanhol nem dava beijinhos na boca de outros homens.
O actor que encarnava a personagem de Pedro Pinto dá pelo nome pouco luso de Zinedine Soualem, mas por aí eu não pego, o senhor fez muito bem o sotaque e tinha mais cara de tuga que eu.
quinta-feira, dezembro 04, 2003
O Mundo visto de França
Um artista francês decidiu representar de memória o mapa político mundial. A versão de um americano teria decerto mais piada (este até se lembrou de Portugal...), mas não deixa de ser curioso. Um dia destes tento fazer a minha versão pessoal. Vou-me esquecer de pôr a Espanha mas vai ser de propósito.
segunda-feira, dezembro 01, 2003
Fronteiras geográficas não intimidam o mito urbano nacional
Nunca esperei ser perseguido pelo obscurantismo português quase dois mil quilómetros para cá de Vilar Formoso.
Alguém explique por favor à Gwendoline da Silva Batateiro que não existem em Portugal sete pessoas com esse mesmo nome que os seus progenitores lhe infligiram. Ninguém se oferece? É compreensível... explico eu.
Vamos admitir, cara Gwendoline, que, por uma pontual preversão sádica do Criador (não são tão incomuns como isso, as sádicas preversões do Criador que vão pontilhando de algum picante o tédio infinito da Existência Eterna), que sim, que existem, e logo sete. Pois lhe garanto, e este senhor não me deixa mentir, que com isso não tem relação alguma o misterioso algarismo à direita do número do seu bilhete de identidade.
Não interessa, Gwendoline, se todos os seus amigos lá da terra lhe confirmam a fabulação, incluíndo o irrepreensível tio Joaquim da Silva, que até é Presidente da Junta (e que por acaso só tem duas pessoas com o mesmo nome em todo o país). O cargo na administração pública não o qualifica, da mesma maneira que a longa experiência e incontestável estatura do Tarzan Taborda no mundo do Wrestling não o qualificavam para afirmar, naquelas saudosas emissões de Domingo por ele comentadas, que ao "bater muitas vezes com a cabeça, as células vermelhas do sangue transformam-se em água, o que se chama a leucemia, que é uma doença que mata muita gente na luta livre americana"*.
Aproveito para revelar aqui em primeira mão que:
- cortar o cabelo ou tomar um duche depois do almoço não induz paragens de digestão assassinas;
- o banho diário não provoca doenças de pele;
- o vinho misturado no estômago com melancia não a transforma em cortiça;
- o Benfica não tem seis milhões de adeptos**;
- não existem no mundo sete mulheres para cada homem, lamento... não... nem sequer no Brasil;
- os crucifixos não acagaçam os vampiros (por outro lado, alho cru em quantidade suficiente afugenta qualquer um, bom cristão ou possessão demoníaca).
Vem um gajo morar para a ruela onde o Diderot, o d'Alembert, o Rousseau e o Voltaire tomavam a bica juntos antes de irem às meninas, para depois ter de levar em cima com crendice medieval!
*Gostaria de conhecer um dia a história por trás do génio comercial que inventou este mito e o espalhou entre os lutadores para lhes poder vender esteróides à vontade. Da memória destes grandes homens não cuida a História.
**Não consigo pensar num nome menos apropriado para a catedral benfiquista que "Estádio da Luz".
Alguém explique por favor à Gwendoline da Silva Batateiro que não existem em Portugal sete pessoas com esse mesmo nome que os seus progenitores lhe infligiram. Ninguém se oferece? É compreensível... explico eu.
Vamos admitir, cara Gwendoline, que, por uma pontual preversão sádica do Criador (não são tão incomuns como isso, as sádicas preversões do Criador que vão pontilhando de algum picante o tédio infinito da Existência Eterna), que sim, que existem, e logo sete. Pois lhe garanto, e este senhor não me deixa mentir, que com isso não tem relação alguma o misterioso algarismo à direita do número do seu bilhete de identidade.
Não interessa, Gwendoline, se todos os seus amigos lá da terra lhe confirmam a fabulação, incluíndo o irrepreensível tio Joaquim da Silva, que até é Presidente da Junta (e que por acaso só tem duas pessoas com o mesmo nome em todo o país). O cargo na administração pública não o qualifica, da mesma maneira que a longa experiência e incontestável estatura do Tarzan Taborda no mundo do Wrestling não o qualificavam para afirmar, naquelas saudosas emissões de Domingo por ele comentadas, que ao "bater muitas vezes com a cabeça, as células vermelhas do sangue transformam-se em água, o que se chama a leucemia, que é uma doença que mata muita gente na luta livre americana"*.
Aproveito para revelar aqui em primeira mão que:
- cortar o cabelo ou tomar um duche depois do almoço não induz paragens de digestão assassinas;
- o banho diário não provoca doenças de pele;
- o vinho misturado no estômago com melancia não a transforma em cortiça;
- o Benfica não tem seis milhões de adeptos**;
- não existem no mundo sete mulheres para cada homem, lamento... não... nem sequer no Brasil;
- os crucifixos não acagaçam os vampiros (por outro lado, alho cru em quantidade suficiente afugenta qualquer um, bom cristão ou possessão demoníaca).
Vem um gajo morar para a ruela onde o Diderot, o d'Alembert, o Rousseau e o Voltaire tomavam a bica juntos antes de irem às meninas, para depois ter de levar em cima com crendice medieval!
*Gostaria de conhecer um dia a história por trás do génio comercial que inventou este mito e o espalhou entre os lutadores para lhes poder vender esteróides à vontade. Da memória destes grandes homens não cuida a História.
**Não consigo pensar num nome menos apropriado para a catedral benfiquista que "Estádio da Luz".