sexta-feira, outubro 31, 2003
Laurette e a arte da burocracia (GNS 2)
Matthieu Laurette queria ter um segunda nacionalidade. Decidiu então escrever aos organismos oficiais de todos os países que encontrou no atlas, inquirindo quais as condições que deveria preencher para obter a respectiva cidadania. Pegou nas respostas e espetou-as num quadro de cortiça encerrado em vidro e alumínio, do género que se pode encontrar numa repartição pública.
Alguns países tinham exigências extravagantes, como o Nepal: pai ou cônjuge nepalês, vinte e cinco anos a viver no território, fluência na língua nepalesa, contribuição reconhecida para a sociedade local, aceitação pelos vizinhos, crédito bancário sólido, dois anos de isolamento nas montanhas e domínio comprovado das técnicas de ordenha de iaques (ok, estas duas últimas são tanga).
Outros limitam-se a apresentar o preçário: 25000$ (+ despesas de processamento) era o pacote standard em Belize.
Outros são simplesmente irreais: o Departamento de Imigração e Cidadania das Maldivas afirma
Não há nenhum processo pelo qual se possa tornar cidadão das Maldivas
Então para que raio é que eles querem um Departamento de Imigração e Cidadania?
Nota: as coisas entretanto mudaram no Nepal e em Belize
Alguns países tinham exigências extravagantes, como o Nepal: pai ou cônjuge nepalês, vinte e cinco anos a viver no território, fluência na língua nepalesa, contribuição reconhecida para a sociedade local, aceitação pelos vizinhos, crédito bancário sólido, dois anos de isolamento nas montanhas e domínio comprovado das técnicas de ordenha de iaques (ok, estas duas últimas são tanga).
Outros limitam-se a apresentar o preçário: 25000$ (+ despesas de processamento) era o pacote standard em Belize.
Outros são simplesmente irreais: o Departamento de Imigração e Cidadania das Maldivas afirma
Não há nenhum processo pelo qual se possa tornar cidadão das Maldivas
Então para que raio é que eles querem um Departamento de Imigração e Cidadania?
Nota: as coisas entretanto mudaram no Nepal e em Belize
quarta-feira, outubro 29, 2003
Le Rouge et le Noir
Domingo à tarde, DVD alugado no apartamento do Pedro e da Dani, que possui todos os confortos da tecnologia moderna e bolacha maria. O filme que escolhemos para alugar tinha duas peculiaridades: 1. o ecrã estava divido em quatro, como nos monitores de vigilância, quatro filmes pelo preço de um; 2. a fotografia não era a cores nem a preto e branco mas a preto e vermelho.
O ecrã 4-em-1 justificava-se facilmente como um dos motores conceptuais do filme. Aliás, o único, porque aquilo argumento não tinha.
Já a fotografia a preto e vermelho não era tão facilmente explicada. Lançámo-nos numa análise profunda em busca das verdadeiras motivações desta opção genial do autor. Abundou a especulação. Seria a película a preto e vermelho mais barata? teria sido uma tentativa de condicionamento psicológico do espectador para a atmosfera do filme? teria o realizador andado a ler Itten? os mestres orientais? homenagem velada à Unita? ao Milan? a Stendhal? superstição? promessa? convicção religiosa? A discussão poderia ter durado horas.
Finalmente o Pedro trouxe luz à nossa batalha intelectual: "Oh pá, parece que a puxar a televisão o cabo do DVD ficou um bocado solto, vê lá agora".
O filme era a cores.
O ecrã 4-em-1 justificava-se facilmente como um dos motores conceptuais do filme. Aliás, o único, porque aquilo argumento não tinha.
Já a fotografia a preto e vermelho não era tão facilmente explicada. Lançámo-nos numa análise profunda em busca das verdadeiras motivações desta opção genial do autor. Abundou a especulação. Seria a película a preto e vermelho mais barata? teria sido uma tentativa de condicionamento psicológico do espectador para a atmosfera do filme? teria o realizador andado a ler Itten? os mestres orientais? homenagem velada à Unita? ao Milan? a Stendhal? superstição? promessa? convicção religiosa? A discussão poderia ter durado horas.
Finalmente o Pedro trouxe luz à nossa batalha intelectual: "Oh pá, parece que a puxar a televisão o cabo do DVD ficou um bocado solto, vê lá agora".
O filme era a cores.
sexta-feira, outubro 24, 2003
O mundo secreto da Gente Feia parisiense
Passeando num final de tarde em Saint-Germain-des-Près ou na Faubourg Saint-Honoré uma pessoa interroga-se: mas não há gente feia nesta terra? Pois bem, claro que há. Na capital mundial da moda, da beleza, dos maneirismos, do requinte estético e da futilidade, a Gente Feia forma uma comunidade marginalizada, um sub-mundo que se furta com habilidade ao olhar público, na tradição do Corcunda de Notre-Dame (de Paris) e do Fantasma da Ópera (de Paris). Durante o dia não sei onde anda a Gente Feia, provavelmente arrastam-se pela Paris subterrânea. Mas de noite...
Uma destas madrugadas, saindo com os copos da Favela, cruzámos o néon apelativo do clube "Le Memphis", Boulevard de la Bonne Nouvelle. Diziam os rumores que quem aguentasse lá até às 7 da manhã teria direito a croissant e pain au chocolat. Grátis. Essa palavra mágica fez-nos esquecer rapidamente o facto de a entrada ter todo o aspecto de uma boîte de brasileiras em Bragança.
O porteiro, muito feio, parecia reticente em ceder-nos passagem; todavia, um olhar escrutinador às nossas olheiras, t-shirts ensopadas em suor e cabelos desgrenhados por uma noitada frenética deu-lhe a confiança necessária. O décor interior era notavelmente coerente com a entrada, num estilo guiado pela alcatifa vermelha da parede, muito feia. A senhora do bengaleiro, muito feia, lançou-nos um olhar de suspeição, encadeado com uma mirada fulminante ao porteiro, a qual ornamentou semi-cerrando as pálpebras e mostrando os caninos num esgar labial. O porteiro, muito feio, encolheu os ombros reconhecendo que talvez tivesse cometido um erro. Nós seguimos na nossa indiferença etílica, que nos dispusemos a reforçar de imediato. Um barman, muito feio, serviu-nos as bebidas e já com elas em punho sentimos coragem para enfrentar a sala. Voltámos costas ao bar. Seguiu-se o choque. Um DJ muito feio passava música muito feia para uma sala cheia de gente muito feia. Graças ao Tchicky e aos 65 graus com 98% de humidade da Favela, tínhamos conseguido penetrar no secreto refúgio de assembleia nocturna da Gente Feia, cuja existência lendária era há muito disputada pelos estudiosos. É aqui que eles passam as noites longe da ditadura estética das discotecas dos Champs-Elysées.
Sozinho teria passado desapercebido, mas o aspecto do resto do grupo traiu-nos. Uma certa electricidade no ar revelava que havíamos sido desmascarados. Não foi possível aguentar muito mais tempo, a pressão dos olhares de repúdio era demasiada. Acabámos por renunciar aos croissants e abandonar o estabelecimento de barriga vazia.
Uma destas madrugadas, saindo com os copos da Favela, cruzámos o néon apelativo do clube "Le Memphis", Boulevard de la Bonne Nouvelle. Diziam os rumores que quem aguentasse lá até às 7 da manhã teria direito a croissant e pain au chocolat. Grátis. Essa palavra mágica fez-nos esquecer rapidamente o facto de a entrada ter todo o aspecto de uma boîte de brasileiras em Bragança.
O porteiro, muito feio, parecia reticente em ceder-nos passagem; todavia, um olhar escrutinador às nossas olheiras, t-shirts ensopadas em suor e cabelos desgrenhados por uma noitada frenética deu-lhe a confiança necessária. O décor interior era notavelmente coerente com a entrada, num estilo guiado pela alcatifa vermelha da parede, muito feia. A senhora do bengaleiro, muito feia, lançou-nos um olhar de suspeição, encadeado com uma mirada fulminante ao porteiro, a qual ornamentou semi-cerrando as pálpebras e mostrando os caninos num esgar labial. O porteiro, muito feio, encolheu os ombros reconhecendo que talvez tivesse cometido um erro. Nós seguimos na nossa indiferença etílica, que nos dispusemos a reforçar de imediato. Um barman, muito feio, serviu-nos as bebidas e já com elas em punho sentimos coragem para enfrentar a sala. Voltámos costas ao bar. Seguiu-se o choque. Um DJ muito feio passava música muito feia para uma sala cheia de gente muito feia. Graças ao Tchicky e aos 65 graus com 98% de humidade da Favela, tínhamos conseguido penetrar no secreto refúgio de assembleia nocturna da Gente Feia, cuja existência lendária era há muito disputada pelos estudiosos. É aqui que eles passam as noites longe da ditadura estética das discotecas dos Champs-Elysées.
Sozinho teria passado desapercebido, mas o aspecto do resto do grupo traiu-nos. Uma certa electricidade no ar revelava que havíamos sido desmascarados. Não foi possível aguentar muito mais tempo, a pressão dos olhares de repúdio era demasiada. Acabámos por renunciar aos croissants e abandonar o estabelecimento de barriga vazia.
quinta-feira, outubro 23, 2003
Uma aventura na chômage
Estive três dias desempregado. Um deles passei-o no Louvre. Noutro, enfiei uma das minhas queridas co-locataires fletemeites num avião para a China, ganhando assim imenso espaço no roupeiro. Não andei de patins porque o dedo que parti há quinze dias continua partido, o que não cessa de me espantar a cada manhã. Fui multado quatro vezes, elevando a minha dívida à justiça francesa a qualquer coisa na ordem dos 700 euros: não pude deixar o carro no emprego, como era hábito, e o estacionamento no meu bairro é tão impossível que fico eufórico se arranjo um lugar em que a multa é de 11 euros em vez dos 35 habituais. Vi um filme em francês do Québec, cuja bela sonoridade me convence que o território foi na verdade colonizado por camponeses do Machico. Também aproveitei para visitar uns palácios, dar uma volta nas galerias de arte do bairro e fazer coisas de desempregado como: seguir atenciosamente o Star Academy; alimentar-me exclusivamente a leite e Chocapic; descongelar o frigorífico; ler romances nos cafés; acordar às oito da manhã e ir despejar o lixo de pijama, só para fazer inveja aos vizinhos que saem de casa para trabalhar, e depois voltar para a cama.
Não me lembrei que tinha um blog. Não me lembrei que os desempregados podem entrar à borla no Louvre.
Não me lembrei que tinha um blog. Não me lembrei que os desempregados podem entrar à borla no Louvre.
sexta-feira, outubro 17, 2003
Lombardi e a arte da conspiração (GNS 1)
O senhor Mark Lombardi vivia para investigar e desenhar com minúcia diagramas complexos de redes de influência política e económica. Seria bom da cabeça? provavelmente não, e ainda bem. Meteu-se onde não era chamado - o escândalo da Banca Nazionale di Lavoro com Máfia e Vaticano à mistura, ou as ramificações dos impérios petrolíferos texanos, onde o Governador George W. Bush e o magnata Osama Bin Laden ocupam posições desconfortavelmente próximas - e acabou por ter uma morte à la David Kelly, a 22 de Março de 2000. Deixou muito por fazer, talvez devesse ter escolhido temas menos sensíveis. Mais quarenta anos de trabalho e poderia estar a encher salas de exposição com labirínticos diagramas tridimensionais tão indestrinçáveis como as redes que representam, ao ponto de perderem qualquer réstia de utilidade.
quinta-feira, outubro 16, 2003
Global Navigation System
Gosto do Palais de Tokyo porque por fora é um monumento a tresandar a fascismo imperialista colonialista decadente, por dentro é um enorme armazém anárquico ocupado por jovens artistas contemporâneos (não fossem eles contemporâneos não poderiam ocupar o armazém anárquico).
O restaurante e o bar renunciam ao supérfluo mas também à esterilização minimalista, adoptando a postura despojada mas cheia de vida da arte num período de crise. Excepto nos preços, porque é Paris. (Em Português: come-se caro em pratos de plástico reciclado).
A loja de souvenirs é inteiramente constituída por objectos vintage japoneses, como relógios digitais Casio com ou sem calculadora (a partir de 40 euros); mini-jogos LCD pré-gameboy, daqueles em que o carro de fórmula 1 alternava entre três posições estáticas e era a estrada que se mexia; rádio-cassette players de proporções gigantescas, estilo tijolo, com mega-ultra-boost e design futurista agressivo à la "Galactica" (350 euros); muitas outras bizarrias.
Vi uma exposição muito catita no Palais de Tokyo. Já foi há mais de um mês, só falo dela agora que já acabou para ter a certeza absoluta que mais ninguém lá vai. Chamava-se Global Navigation System e anunciava a fusão entre as artes plásticas e os sistemas de representação da informação, a topologia antes de todos: o género de coisa que agrada a admiradores de Borges e eleva a níveis obscenos de satisfação intelectual os fanáticos de Pynchon.
Esta exposição estava cheia de coisas interessantes que serão tema das digressões fastidiosas e inconsequentes em que me lançarei nos próximos posts, numa tentativa de afugentar os poucos internautas que venham parar a esta Baguete, principalmente os que o fazem lançando no Google a busca "et pluribus unum águia catedral benfica é o maior olé olé". Xô!
Nota: Os que vêm à procura de "sexo grátis pretas gordas" ou "meninas sugadores"(sic) são naturalmente bem-vindos. Não quero cá é pessoas que chegam ao Google e lhe perguntam, como se estivessem a falar com o padre, "como pode arrumar motivação uma pessoa triste para ficar satisfeito e continuar lutando?". (Eu sugiro pretas gordas ou meninas sugadores.)
quinta-feira, outubro 09, 2003
E Pluribus Unum
O plágio é uma coisa feia.
O Che mandou da Argentina uma posta muito interessante em que comete de passagem um erro, relativamente insignificante, em que muitos benfiquistas incorrem com frequência. O lema do seu amado clube não é "et pluribus unum" mas "e pluribus unum". Não faz mal nenhum, até porque já ninguém tem obrigação de saber Latim e por isso clubes mais sensatos têm lemas em Português, como "Esforço, Dedicação, Devoção e Glória", evitando erros de ortografia (nem sempre, mas vá...) e de interpretação. O pouco latim que me resta chega para entender que "e pluribus unum" não significa "um por todos e todos por um" nem "de todos o primeiro" nem "e muitas vezes o único" nem nenhuma dessas barbaridades que saem regularmente da boca de alguns lampiões mais preocupados com a emblemática do clube. Na verdade, "e pluribus unum" significa "a partir de muitos, um só", o que, convenhamos, não faz sentido nenhum como lema de um clube de futebol, mas também não se esperava outra coisa.
Ora se não faz sentido num clube de futebol, porque raio é que foi escolhido?
Vou contar um história. Quando eu era muito pequenino e os outros meninos queriam ser bombeiros e astronautas, eu queria ser capitalista. Com 5 ou 6 anos, os meus heróis eram o Tio Patinhas e o Alex do "Family Ties" (também achava piada à Mallory, mas na altura ainda não percebia porquê). Tal como os outros meninos, tinha uma colecção, só que a minha, claro, era uma colecção de dinheiro. Portanto desde tenra idade que estava habituado a ver dólares americanos (na altura cotados a 25 escudos, ai ai que saudades) e, nos dólares, aquela águia e aquele lema. No grande selo americano, criado pouco depois da independência e da união das 13 colónias, "a partir de muitos, um só" é um lema que faz sentido. Quando foi fundado o Sport Lisboa, antes de haver consultores de imagem e técnicas avançadas de branding, um presidente da junta manhoso com um primo na América decidiu que ao preço a que estavam os artistas, mais valia copiar a brasão e o lema e esperar que ninguém reparasse. E não é que resultou? Muito me surpreende que nenhum tubarão da advocacia americano tenha tido alguma vez a ideia de processar o Benfica. Ou talvez algum tenha tido, mas deu uma olhadela às finanças do clube e desistiu da ideia.
O Che mandou da Argentina uma posta muito interessante em que comete de passagem um erro, relativamente insignificante, em que muitos benfiquistas incorrem com frequência. O lema do seu amado clube não é "et pluribus unum" mas "e pluribus unum". Não faz mal nenhum, até porque já ninguém tem obrigação de saber Latim e por isso clubes mais sensatos têm lemas em Português, como "Esforço, Dedicação, Devoção e Glória", evitando erros de ortografia (nem sempre, mas vá...) e de interpretação. O pouco latim que me resta chega para entender que "e pluribus unum" não significa "um por todos e todos por um" nem "de todos o primeiro" nem "e muitas vezes o único" nem nenhuma dessas barbaridades que saem regularmente da boca de alguns lampiões mais preocupados com a emblemática do clube. Na verdade, "e pluribus unum" significa "a partir de muitos, um só", o que, convenhamos, não faz sentido nenhum como lema de um clube de futebol, mas também não se esperava outra coisa.
Ora se não faz sentido num clube de futebol, porque raio é que foi escolhido?
Vou contar um história. Quando eu era muito pequenino e os outros meninos queriam ser bombeiros e astronautas, eu queria ser capitalista. Com 5 ou 6 anos, os meus heróis eram o Tio Patinhas e o Alex do "Family Ties" (também achava piada à Mallory, mas na altura ainda não percebia porquê). Tal como os outros meninos, tinha uma colecção, só que a minha, claro, era uma colecção de dinheiro. Portanto desde tenra idade que estava habituado a ver dólares americanos (na altura cotados a 25 escudos, ai ai que saudades) e, nos dólares, aquela águia e aquele lema. No grande selo americano, criado pouco depois da independência e da união das 13 colónias, "a partir de muitos, um só" é um lema que faz sentido. Quando foi fundado o Sport Lisboa, antes de haver consultores de imagem e técnicas avançadas de branding, um presidente da junta manhoso com um primo na América decidiu que ao preço a que estavam os artistas, mais valia copiar a brasão e o lema e esperar que ninguém reparasse. E não é que resultou? Muito me surpreende que nenhum tubarão da advocacia americano tenha tido alguma vez a ideia de processar o Benfica. Ou talvez algum tenha tido, mas deu uma olhadela às finanças do clube e desistiu da ideia.
terça-feira, outubro 07, 2003
Manifesto pela cultura
Ouvi a Teresa Cremisi* dizer ao Bernard Pivot** que em França se vendem 120 milhões de livros de bolso por ano. Não sendo os livros de bolso particularmente decorativos, ainda que pontualmente práticos para ajustar as pernas de mesas mancas, deduzo que uma boa parte deles seja até mesmo, pasme-se... lida [ooohhh, aaahhh, rumores do público incrédulo que reajusta a posição do fofo nos assentos]. Não sei qual é o número em Portugal, mas suponho que ande bem longe dos 20 milhões que levariam a uma mesma taxa per capita (França tem 60 milhões de habitantes, incluíndo um milhão de portugueses que lêem ainda menos que os portugueses de Portugal).
Porque acho de mau gosto levantar um problema sem sugerir uma solução, aqui começa o manifesto:
Solução Genial e Infalível
- Construa-se uma rede de transportes públicos digna de respeito, que as pessoas possam usar para ir para o emprego sem sentir que são vítimas de uma conspiração cósmica; nada que não se resolva com 30% do PIB durante 10 anos;
- Vendam-se livros a dois euros em quiosques adjacentes às paragens de autocarros e estações de metro;
- Produzam-se esses livros de forma a que não se desfaçam ao fim de 3 dias de leitura, tenham um incidência relativamente baixa de erros ortográficos, não assustem os leitores com papel amarelo e capas que já eram feias nos anos 70 e, se de autores estrangeiros, sejam traduzidos por alguém que entenda o que estava escrito no original;
- Contratem-se modelos de ambos os sexos para fingir que lêem obras de autores de qualidade nos transportes públicos, adicionando assim o pequeno elemento de incentivo sexual.
Projecção de Resultados
Antes:
O Sr. Costa, Tozé, benfiquista, bigodaça, larga a Dona Arminda com a telenovela venezuelana e vai para o escritório da seguradora onde trabalha há 24 anos no seu Volkswagen Golf de 92. Passa 3 horas por dia na IC19, ouve a TSF e por isso considera-se culto, chega cansado ao trabalho e por isso tem de fazer uma pausa para a bica e a Bola ainda antes de começar. Tem baixa produtividade, é infeliz, bate na mulher, já não bate nos filhos porque estão maiores que ele, gostaria de comer a Salette da Contabilidade (que em tempos quis ser cabeleireira mas, tendo descoberto recentemente a sua vocação artística, quer agora entrar na Academia de Estrelas), mas a Salette não deixa porque o bigode pica.
Depois:
Tozé demora 20 minutos a chegar ao emprego num comboio que passa de 2 em 2 minutos e onde tem sempre lugar sentado. Anseia por qualquer coisa para se entreter no caminho, dado que já cortou as unhas este mês (salvo a do mindinho esquerdo, claro está) e o Benfica está tão mal que o médico desaconselhou a leitura da Bola. No quiosque da estação, sente-se tentado pelo último êxito do Cacá Espírito Santo de Noronha Vasconcellos, o qual revela - recorrendo a pequenos sketches caricaturais e enumerações cheias de humor espertalhão - porque é os homens são uns cabrões e as mulheres são caprichosas. Todavia, o agente de vendas, mestrando em Românicas, dissuade-o explicando que aquilo é livro de gaja. O olhar de Tozé perpassa por uma belíssima capa do Chip Kidd, que reconhece de algures. É a edição bilingue em dupla costura do Finnegans Wake que havia visto no dia anterior nas mãos (um pouco abaixo do decote) de uma bomba de silicone consideravelmente mais apetecível que a Salette. Como tem uma nota de 10 euros aproveita e leva as obras completas do Joyce. Fica automaticamente mais inteligente e melhor trabalhador, não tem paciência para falar de bola nem bater na mulher enquanto não tiver esclarecido quem é que usa as calças no casal Bloom. Reflexões sobre a condição humana inspiram-no a partilhar a responsabilidade da gestão do lar, dar a oportunidade à Dona Arminda de estudar, trabalhar e ter o seu próprio círculo de amizades. A sua imaginação floresce e a relação sexual com a Dona Arminda soleva-se das profundezas onde jazia ao abandono. Portugal torna-se um centro de inovação tecnológica mundial, toda a gente paga impostos, os construtores civis e autarcas voltam a ser pobres e honestos, o PIB cresce 12% ao ano e em Outubro de 2023 está recuperado o investimento.
Efeitos perversos
Não há bela sem senão: as rádios perdem audiência, as telenovelas venezuelas definham, o mercado deixa de ser suficiente para os quinze diários desportivos, perdendo riqueza uma das mais criativas fontes da ficção nacional, O Tozé deixa de ter a exclusividade no adultério, as petrolíferas e a indústria automóvel perdem rios de dinheiro, a falta de poluição provoca problemas respiratórios nos lisboetas já dependentes do monóxido de carbono, escroques e vigaristas têm vítimas muito mais despertas e exigentes, o Benfica nunca mais pode contar com uma Operação Coração, o João Baião e o Marco Paulo morrem na desgraça e no anonimato.
_________
* directora editorial da Gallimard, uma italiana de sangue indiano/inglês/árabe nascida em Alexandria, criada por uma ama grega mas que sempre falou francês em casa
* o senhor cujo retrato pode ser encontrado sob a forma de um retábulo de cuidada feitura, rodeado de velinhas votivas sempre acesas e regularmente renovadas, num canto secreto dos aposentos de Carlos Pinto Coelho; complementa-o um relicário onde este último preserva um fragmento das cuecas sujas do primeiro, surrupiadas do hotel aquando da sua visita a Lisboa
Porque acho de mau gosto levantar um problema sem sugerir uma solução, aqui começa o manifesto:
Solução Genial e Infalível
- Construa-se uma rede de transportes públicos digna de respeito, que as pessoas possam usar para ir para o emprego sem sentir que são vítimas de uma conspiração cósmica; nada que não se resolva com 30% do PIB durante 10 anos;
- Vendam-se livros a dois euros em quiosques adjacentes às paragens de autocarros e estações de metro;
- Produzam-se esses livros de forma a que não se desfaçam ao fim de 3 dias de leitura, tenham um incidência relativamente baixa de erros ortográficos, não assustem os leitores com papel amarelo e capas que já eram feias nos anos 70 e, se de autores estrangeiros, sejam traduzidos por alguém que entenda o que estava escrito no original;
- Contratem-se modelos de ambos os sexos para fingir que lêem obras de autores de qualidade nos transportes públicos, adicionando assim o pequeno elemento de incentivo sexual.
Projecção de Resultados
Antes:
O Sr. Costa, Tozé, benfiquista, bigodaça, larga a Dona Arminda com a telenovela venezuelana e vai para o escritório da seguradora onde trabalha há 24 anos no seu Volkswagen Golf de 92. Passa 3 horas por dia na IC19, ouve a TSF e por isso considera-se culto, chega cansado ao trabalho e por isso tem de fazer uma pausa para a bica e a Bola ainda antes de começar. Tem baixa produtividade, é infeliz, bate na mulher, já não bate nos filhos porque estão maiores que ele, gostaria de comer a Salette da Contabilidade (que em tempos quis ser cabeleireira mas, tendo descoberto recentemente a sua vocação artística, quer agora entrar na Academia de Estrelas), mas a Salette não deixa porque o bigode pica.
Depois:
Tozé demora 20 minutos a chegar ao emprego num comboio que passa de 2 em 2 minutos e onde tem sempre lugar sentado. Anseia por qualquer coisa para se entreter no caminho, dado que já cortou as unhas este mês (salvo a do mindinho esquerdo, claro está) e o Benfica está tão mal que o médico desaconselhou a leitura da Bola. No quiosque da estação, sente-se tentado pelo último êxito do Cacá Espírito Santo de Noronha Vasconcellos, o qual revela - recorrendo a pequenos sketches caricaturais e enumerações cheias de humor espertalhão - porque é os homens são uns cabrões e as mulheres são caprichosas. Todavia, o agente de vendas, mestrando em Românicas, dissuade-o explicando que aquilo é livro de gaja. O olhar de Tozé perpassa por uma belíssima capa do Chip Kidd, que reconhece de algures. É a edição bilingue em dupla costura do Finnegans Wake que havia visto no dia anterior nas mãos (um pouco abaixo do decote) de uma bomba de silicone consideravelmente mais apetecível que a Salette. Como tem uma nota de 10 euros aproveita e leva as obras completas do Joyce. Fica automaticamente mais inteligente e melhor trabalhador, não tem paciência para falar de bola nem bater na mulher enquanto não tiver esclarecido quem é que usa as calças no casal Bloom. Reflexões sobre a condição humana inspiram-no a partilhar a responsabilidade da gestão do lar, dar a oportunidade à Dona Arminda de estudar, trabalhar e ter o seu próprio círculo de amizades. A sua imaginação floresce e a relação sexual com a Dona Arminda soleva-se das profundezas onde jazia ao abandono. Portugal torna-se um centro de inovação tecnológica mundial, toda a gente paga impostos, os construtores civis e autarcas voltam a ser pobres e honestos, o PIB cresce 12% ao ano e em Outubro de 2023 está recuperado o investimento.
Efeitos perversos
Não há bela sem senão: as rádios perdem audiência, as telenovelas venezuelas definham, o mercado deixa de ser suficiente para os quinze diários desportivos, perdendo riqueza uma das mais criativas fontes da ficção nacional, O Tozé deixa de ter a exclusividade no adultério, as petrolíferas e a indústria automóvel perdem rios de dinheiro, a falta de poluição provoca problemas respiratórios nos lisboetas já dependentes do monóxido de carbono, escroques e vigaristas têm vítimas muito mais despertas e exigentes, o Benfica nunca mais pode contar com uma Operação Coração, o João Baião e o Marco Paulo morrem na desgraça e no anonimato.
_________
* directora editorial da Gallimard, uma italiana de sangue indiano/inglês/árabe nascida em Alexandria, criada por uma ama grega mas que sempre falou francês em casa
* o senhor cujo retrato pode ser encontrado sob a forma de um retábulo de cuidada feitura, rodeado de velinhas votivas sempre acesas e regularmente renovadas, num canto secreto dos aposentos de Carlos Pinto Coelho; complementa-o um relicário onde este último preserva um fragmento das cuecas sujas do primeiro, surrupiadas do hotel aquando da sua visita a Lisboa
segunda-feira, outubro 06, 2003
Nuit Blanche
Um milhão de pessoas que enfrentam as intempéries para ver arte contemporânea pela noite dentro.
Mega-party na piscina de Saint-Germain - Porreiro - O último a ir à água todo vestido caga de elástico! (...) Olha lá, porque é que toda a gente traz mochila? (...) Oh chefe, mas quem lhe disse que eu quero nadar, olhe lá bem pra mim e diga-me se tenho cara de desportista! onde é que é o bar? (...) Estes baguetes já faziam um estágio com o Abade pra ver se aprendem a fazer festas na piscina! nem álcool, nem moelas, nem concurso miss t-shirt molhada. Retirada. Já. (...) Achas que vai chover? (...) Por enquanto borramos nestas coisas com bicha, lá prás 3 está tudo às moscas. (...) Vamos aos Halles, disseram-me que montaram por lá umas tascas. (...) Aguenta um bocadinho que isto já passa. (...) A coisa bem feita era assim: noite branca -> só bebidas brancas, uma coisa temática. O Louvre com patrocínio da Gordon's, Absolut a jorrar das fontes da Concorde (...) Não achas que está a chover menos? - Não (...) Já te contei a história do Nostradamus e da Catarina de Médicis na coluna da Bolsa do Comércio? (...) Que é das tascas, não vejo nada! - Está um monte de gente a entrar em St-Eustache, deve ser lá. - Uhh, dentro da igreja, kinky! (...) Ao menos aqui dentro está seco (...) Aquilo é um irlandês? (...) Oh chefe, duas pints de Guinness e dois shots de tequilla enquanto a espuma assenta (...) Em certas culturas, ter as calças encharcadas coladas às pernas é considerado um fortalecedor do espírito. - Sim sim, e também acham que o chazinho de cogumelos põe o xamã em contacto directo com os deuses. (...) Um sprint de 50 metros e bebemos outra jola no próximo tasco. (...) Olha lá se me fazes andar estes quilómetros debaixo de chuva pra ver o raio do gigante no Teatro da Paneleiragem Lírica e aquilo não vale um chavelho, contrato os ciganos pra te aviar e passas os próximos cinquenta anos a comer por uma palhinha - Se não prestar pago-te um copo - OK, é justo (...) Bom, concordamos que me estás a dever um copo, certo? (...) Um táxi, um táxi! - Aquela brasserie acho que ainda serve - Então bebemos só mais uma (...) Já estão a piscar as luzes - Bem te disse que devíamos ter pedido logo três para cada um (...) Não está frio, não está frio, não está frio, é tudo na tua cabeça, tudo na cabeça, molhado é bom, é bom, como se estivesses na praia, tudo na cabeça, tudo na cabeça (...) Bolinhas de sabão, que lindo (...) Há croissants à pala às 6 e meia. Borlas. Em Paris. Hei-de comer a porra dos croissants nem que tenha de morrer já amanhã de pneumonia.
quarta-feira, outubro 01, 2003
Quem manda aqui?
O sistema de ensino público francês, a Education Nationale, é uma máquina monstruosa que emprega mais de um milhão de pessoas. A EN é frequentemente acusada de ser elitista, esclerosada e irreformável. Com razão.
As crianças são em grande medida educadas pelo Estado. Desde muito jovens, por vezes com poucos meses de idade, são enfiadas numa rede de creches tão ubíqua como o metro de Paris e mais do que a rede de caixas multibanco. Como os pais podem deixar as crianças a menos de 50 metros de casa antes de ir para o trabalho (em transportes públicos que funcionam), têm muitos filhos, pouco stress e produtividade elevada. A economia floresce.
Logo a partir da Primária começa a segregação. A colocação nas escolas até ao fim do Liceu é feita pela área de residência e os limites das áreas de residência são cuidadosamente manipulados para ter meninos ricos de um lado e meninos pobres do outro. Começam também as classes especiais para alunos mais avançados.
Existem muitos tipos de ensino secundário alternativo, a vários níveis, que encaminham directamente o aluno à sua futura posição na estrutura social. São especialmente cobiçados os lugares num punhado de liceus públicos no centro de Paris, os grands lycées. As famílias mais abastadas têm casas arrendadas na vizinhança, muitas vezes vazias, só para poder lá inscrever os infantes. O valor das rendas dispara.
No fim do liceu, um exame - o Baccalauréat ou Bac - dá acesso ao ensino superior. Mais uma vez existem vários tipos de Bac. Quem quiser ser alguém na vida tem de fazer o Bac S.
No ensino superior instala-se o caos, as subtilezas entre os tipos de universidade, curso, ou grau, são incompreensíveis para quem vem de um mundo de bacharelato-licenciatura-mestrado-doutoramento. A camada superior toda a gente a conhece: as Grandes Ecoles. Para a elas aceder é necessário um curso preparatório de dois ou três anos que é conhecido pela exigência extrema. Muitos esgotamentos, muitas desistências para viver os melhores anos, muita droga para estimular o cérebro e muito cabelo branco depois, uma pequena escol consegue aceder a instituições como a Ecole Nationale d'Administration (ENA), onde são formadas as elites políticas (os énarques) ou a Ecole Polytechnique, cujos alunos (os X) desfilam nos Champs Elysées a cada 14 de Julho.
Este sistema é socialmente injusto e cria uma sociedade estratificada.
França é dirigida por uma elite arrogante e monolítica.
Portugal é dirigido por chicos-espertos, embrulhões e afilhados.
As crianças são em grande medida educadas pelo Estado. Desde muito jovens, por vezes com poucos meses de idade, são enfiadas numa rede de creches tão ubíqua como o metro de Paris e mais do que a rede de caixas multibanco. Como os pais podem deixar as crianças a menos de 50 metros de casa antes de ir para o trabalho (em transportes públicos que funcionam), têm muitos filhos, pouco stress e produtividade elevada. A economia floresce.
Logo a partir da Primária começa a segregação. A colocação nas escolas até ao fim do Liceu é feita pela área de residência e os limites das áreas de residência são cuidadosamente manipulados para ter meninos ricos de um lado e meninos pobres do outro. Começam também as classes especiais para alunos mais avançados.
Existem muitos tipos de ensino secundário alternativo, a vários níveis, que encaminham directamente o aluno à sua futura posição na estrutura social. São especialmente cobiçados os lugares num punhado de liceus públicos no centro de Paris, os grands lycées. As famílias mais abastadas têm casas arrendadas na vizinhança, muitas vezes vazias, só para poder lá inscrever os infantes. O valor das rendas dispara.
No fim do liceu, um exame - o Baccalauréat ou Bac - dá acesso ao ensino superior. Mais uma vez existem vários tipos de Bac. Quem quiser ser alguém na vida tem de fazer o Bac S.
No ensino superior instala-se o caos, as subtilezas entre os tipos de universidade, curso, ou grau, são incompreensíveis para quem vem de um mundo de bacharelato-licenciatura-mestrado-doutoramento. A camada superior toda a gente a conhece: as Grandes Ecoles. Para a elas aceder é necessário um curso preparatório de dois ou três anos que é conhecido pela exigência extrema. Muitos esgotamentos, muitas desistências para viver os melhores anos, muita droga para estimular o cérebro e muito cabelo branco depois, uma pequena escol consegue aceder a instituições como a Ecole Nationale d'Administration (ENA), onde são formadas as elites políticas (os énarques) ou a Ecole Polytechnique, cujos alunos (os X) desfilam nos Champs Elysées a cada 14 de Julho.
Este sistema é socialmente injusto e cria uma sociedade estratificada.
França é dirigida por uma elite arrogante e monolítica.
Portugal é dirigido por chicos-espertos, embrulhões e afilhados.